sábado, 30 de outubro de 2010

O Colégio Pedro II (continuação)

A carteirinha (capa) de identida do Pedro II

O distintivo do 4º ano ginasial (1961)

A vida no colégio era um carrossel de novidades onde a rotina das aulas parecia apenas impor uma pausa. Para mim, em particular, havia muito mais a descobrir além do que constava nos manuais escolares. Com isso as matérias do curso formal ficaram para segundo plano. Nem mesmo a matemática escapou. A matéria era um dos pontos fortes do colégio e estava até no nosso “grito de guerra”, a “tabuada”:

“Pedro II, tudo ou nada?
Tudo!
Então, como é que é?
É tabuada!
Três vezes nove, vinte e sete.
Três vezes sete, vinte e um.
Menos doze ficam nove,
Mnos oito fica um.
Zum, zum, zum...
Paratibum...
Pedro II!”.

Nas horas de recreio os grupos se formavam para conversar e para participar das brincadeiras. Eram nessas horas também que a garotada desfilava seus novos brinquedos, revistas, livros e também seus objetos que identificavam e diferenciavam o status social de cada um: canetas Parker 51, radinhos de pilha SPIKA, relógios de pulso, raquetes de pingue-pongue importadas e outras "preciosidades" da época.

As informações chegavam mais completas e podíamos conversar sobre tudo com liberdade. Além disso, o convívio com os mais velhos, alunos do científico e do clássico, nos estimulava a formar uma consciência melhor do que se passava no lado de fora. Era comum que os estudantes, mesmo os do segundo grau, se envolvessem em assuntos de interesse público. Como havia ocorrido em 57, quando os alunos do Pedro II participaram de um grande protesto contra o aumento da passagem dos bondes e que paralizaram o trânsito em alguns pontos da cidade.

Durante os anos que estive no Pedro II assisti à construção, no Campo de São Cristóvão, do centro de exposições para as comemorações do IV Centenário da cidade. A sala de aula no quarto andar do velho prédio permitia uma boa visão daquela obra de arquitetura diferente. A colocação das placas de cobertura era uma novidade e um desafio novo para os engenheiros. Foi um trabalho demorado e custoso e, ao que tudo indica discutível. No primeiro temporal metade daquelas placas voou. Hoje, sem a problemática cobertura, está destinado a um centro de tradições nordestinas.

Na mesma época o Pedro II também estava em obras. Construía-se um novo prédio para salas de aula. Por alguma razão, entretanto, as obras foram paralisadas e assim permaneceram por muito tempo. Só foram retomadas após o incêndio misterioso que destruiu o prédio antigo, em janeiro de 61, durante as férias.

Não foi o incêndio, entretanto, que destruiu a velha instituição. Eu sai no final de 61, após concluir o 4º ano do ginasial. O regime de internato (que havia sido inaugurado em 1857) ainda durou alguns anos mais, até 1968. Foram 111 anos de história! A mudança mais importante, entretanto, viria em 1971 com a lei que reestruturava o ensino médio no Brasil e unia o curso ginasial ao primário, em oito séries, formando o novo “primeiro grau”. Ficava extinto, portanto, o processo seletivo que caracterizara historicamente o Pedro II. A instituição continua existindo até hoje, mas em bases completamente distintas das que eu experimentei ali.

Minha passagem como estudante pelo histórico colégio do campo de São Cristóvão foi muito modesta: terminei o 4º ano com média pouco acima de seis. A experiência, contudo, valeu por uma universidade.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

O Colégio Pedro II


O colégio Pedro II do Campo de São Cristóvão era também um internato. Pode parecer que naquela época só havia colégios assim no Rio de Janeiro. Na verdade os internatos tinham sido uma necessidade na época em que não havia escolas no interior do país para que os jovens progredissem além dos estudos básicos. O ensino mais qualificado só estava disponível nos colégios das cidades de maior porte e nas capitais. Assim, boa parte deles recebia alunos como internos.

Os internatos marcaram época e ficaram imortalizados na literatura brasileira, como em “O Ateneu”, de Raul Pompéia, editado em 1888, e “Doidinho” de José Lins do Rego, publicado em 1933. Depois desses ainda saíram os textos de Pedro Nava, com “Balão Cativo”, de 1973 e “Chão de Ferro”, publicado em 1976, este narrando sua passagem pelo Pedro II, nos anos 20. Todos os textos são autobiográficos.

Na segunda metade do século XX essa não era mais a realidade e o Pedro II era um dos poucos remanescentes daquela época. Além do mais, era um colégio especial que carregava uma longa e importante história. Havia sido criado no dia 2 de dezembro de 1837 em homenagem ao imperador Pedro II que naquela data completava doze anos. Foi instalado no prédio da atual Avenida Floriano Peixoto, no centro da cidade, onde deveria funcionar tanto em regime de externato como de internato. Vinte anos mais tarde, em 1857, o internato passou a constituir uma unidade distinta, instalado na Rua São Francisco Xavier, onde funcionou por três décadas. Em 1888 foi transferido para o campo de São Cristóvão, no mesmo local onde, curiosamente, a Candelária havia pretendido instalar o seu primitivo projeto do Asilo para a Infância Desvalida. A coincidência ficava apenas no interesse pelo prédio. O colégio Pedro II era uma instituição que se destinava à educação da elite juvenil brasileira, preparando alunos para o ensino superior, muito diferente, portanto, do asilo imaginado pela Candelária, voltado para o ensino básico e da preparação para as atividades técnicas fabris.



O prédio do colégio Pedro II, no início do século XX

No final dos anos 50, embora já não fizesse mais sentido a manutenção de internatos daquele tipo, como acima foi dito, o Pedro II preservava o seu antigo formato. Não era apenas por tradição, mas porque era ainda considerado como colégio padrão para o ensino secundário em todo país. Possuía um quadro de professores do mais alto nível e os livros adotados pelo colégio eram referência para a maioria das outras escolas. Por tudo isso, suas vagas continuavam a ser intensamente disputadas.

Quando me inscreveram para o concurso de admissão ao Pedro II eu não sabia nada disso. O que eu sabia apenas é que era um outro internato e que era gratuito, condições que estavam em acordo com as finanças da família e que o colocavam no topo das nossas preferências. Eu também não entendia porque que apesar de se tratar de um internato havia uma multidão de candidatos, a grande maioria composta por jovens provenientes de famílias da classe média que residiam na própria cidade do Rio de Janeiro e que não teriam problemas em freqüentar os externatos.

Só aos poucos fui me dando conta do que representava o ingresso naquele colégio. Principalmente pela expressão de respeito que os adultos pareciam dar ao fato de eu ter passado no exame de admissão. Aos poucos, também, fui entendendo as diferenças com o internato de onde saíra. No anterior éramos todos pobres e nada nos diferenciava. Ali, apesar da gratuidade, poucos eram realmente carentes. Aliás, foi preciso que minha mãe andasse atrás de atestados de pobreza para que a burocracia estatal me concedesse o direito de receber gratuitamente livros, cadernos, uniformes e todo o enxoval de cama e banho que o colégio exigia.

A consciência das diferenças entre os dois internatos só veio mesmo com o início das aulas. O primeiro dia foi algo inesquecível. Centenas de garotos, dos onze ao vinte anos se apinhavam no grande pátio coberto contíguo ao velho prédio. Os veteranos saudando o retorno às aulas; os novatos tentando fazer os primeiros contatos entre si. A algazarra era imensa e parecia incontrolável. Até que surgiram os inspetores com suas batas brancas e, logo, com autoridade, foram organizando as turmas. Em poucos minutos todos estavam em filas, aguardando o comando para subir para as salas de aulas. Minha turma era mais numerosa do que toda a população do anterior educandário. Era o momento agora do primeiro contato com os professores, da tentativa de conhecer cada um dos companheiros pelo nome, acompanhando a chamada oral. E de ouvir pela primeira vez o próprio nome naquela lista. Era verdade: eu estava ali.

Depois veio o primeiro recreio e o início das primeiras amizades. E também a surpresa, esta pelo lado negativo, de ser obrigado a passar pelo tão tradicional quanto estúpido trote. Principalmente por que minhas orelhas de abano me faziam ser um dos mais requisitados pelos veteranos. Enfim, era uma forma de batismo e de contato entre novos e velhos alunos que os inspetores não reprimiam Mas ficavam vigilantes e sua presença evitava abusos.

Depois das primeiras semanas já me sentia plenamente um membro daquela grande comunidade. Para quem saíra de um internato religioso com trinta e poucas crianças, o Pedro II era um mundo. Mais de quinhentos alunos, pelo menos uma centena de professores e bedéis e outro tanto de funcionários diversos. E muito espaço: o colégio ocupava uma área aproximada de quarenta mil metros quadrados. Parecia impossível que tudo aquilo pudesse funcionar ordenadamente. Na verdade o colégio tinha regras a serem respeitadas e a os bedéis eram bastante rígidos. Eles se revezavam com os professores nas salas de aula e marcavam presença também nas áreas de recreio, refeitório e em todos os outros espaços onde os alunos poderiam estar durante o dia. Nos dormitórios, eram mantidos vigias por toda a noite.

O Campo de São Cristóvão, por volta de 1960:
o Centro de Exposições ao centro, ainda com as placas de cobertura do projeto original,
e o colégio Pedro II ao alto, onde se pode identificar o antigo prédio
 e, mais atrás, o novo e amplo edifício em construção.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Último dia

Quinze de dezembro, domingo. 1957. Dia da festa de encerramento do ano letivo. Como ocorria todos os anos, a cerimônia constava de premiações aos que se haviam destacado nos estudos e no comportamento. Minha mãe e a tia Olímpia estavam lá. Minha participação no vestibular para o Pedro II foi reconhecida e elogiada, mesmo sem se saber ainda o resultado. Recebi uma nova medalhinha dourada de “honra ao mérito” e um prêmio em dinheiro creditado numa conta de poupança que eu poderia retirar quando fizesse dezoito anos. 

Os lauréis eram importantes, mas o momento mais aguardado, depois de quatro anos de internato, era o momento de cruzar o portão de ferro com a certeza de que não teria que retornar no ano seguinte.

Encerrada a festa, começaram as despedidas. À sensação da liberdade juntava-se a sensação das perdas. Deixavam também o colégio naquele ano o Rogério, o Marcos e o Walter, companheiros de quatro longos anos. Também saíam os que terminaram a 4ª série naquele ano. Talvez jamais voltasse a encontrá-los. Iriam todos enfrentar novos desafios em mundos diferentes. A única certeza era de que nenhum de nós esperava encontrar uma vida fácil.

À saída, as professoras e freiras desejaram-nos boa sorte. Teriam motivos para pensar que nunca mais nos veriam. Tinham cumprido sua missão.

O portão estava aberto. Cruzá-lo já não tinha mais nenhum significado especial. Era apenas uma passagem.

Minha mãe e eu alcançamos a rua e seguimos a pé para o Campo de São Cristóvão onde também acontecia o encerramento do ano letivo no Departamento Feminino.

Era um dia quente, prenunciando o calor intenso de mais um verão carioca. A rua já estava calma e silenciosa como sempre, indiferente aos transeuntes. Íamos falando dos novos problemas e de como as coisas se arranjariam dali por diante.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Passaporte para o ginásio

Não foi só pelo episódio do concurso de matemática nos tempos da 4ª série que eu guardo a professora Maria Luiza na memória com um carinho especial. Ela sabia da situação de todos os seus alunos de suas famílias e tentava sempre fazer algo a mais para nos ajudar a aprender. E foi com essa motivação que no final daquele ano começou a fazer mais uma campanha, desta vez para que o colégio oferecesse, no ano seguinte, a quinta série. É que naquela época o curso primário ia só até à 4ª série e esse era o compromisso do educandário para com os internos. Concluída a 4ª série tínhamos de voltar para casa e buscar cada um o seu próprio rumo. Além disso, para se entrar no ginasial era preciso passar por um exame de admissão, razão porque muitas escolas adotavam um 5º ano, também chamado de « curso de admissão ». E tal foi o seu empenho que mais uma vez conseguiu o seu intento. Ela conseguiu fazer, também, que eu entendesse que ficar um ano a mais no internato era algo necessário e bom para mim.

Mas não ficou por aí. Quando alguém sugeriu no ano seguinte que eu deveria tentar uma vaga para fazer o  ginasial no histórico Colégio Pedro II foi ela mais uma vez que me tomou como aluno especial, para que eu não perdesse aquela oportunidade. É que a disputa era bem concorrida; mais de dois mil candidatos para apenas quarenta vagas.

Faltando um mês para os exames ela conseguiu que as freiras me deixassem ir para a sua casa e me fez estudar em regime intensivo. Deu resultado. Quando o Diário de Notícias publicou a relação dos classificados, na edição do dia 20 de dezembro, meu nome estava lá. A 40ª vaga era a minha. Era o meu passaporte para uma escola considerada de elite.

Alguns dias depois minha mãe e eu fomos à casa da professora agradecer o quanto fizera por mim. Dona Maria Luiza estava feliz. Tinha sido uma vitória também sua.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Dois presidentes

Dois Presidentes




A comunidade luso-brasileira estava em festa naquele início de junho de 1957. Desde 1910, ano em que se instalou a República em Portugal, era apenas a segunda vez que o Brasil ia receber a visita de um presidente da “pátria-mãe”. O ilustre visitante era o General Craveiro Lopes, militar de carreira, formado na aviação, que apesar de General e de Presidente pouco mandava em Portugal. Talvez por isso tenha sido esperado com mais carinho.

Craveiro Lopes era uma espécie de chefe de estado dos atuais regimes parlamentares. Havia assumido a presidência de Portugal em 1951 e terminaria o seu mandato em agosto daquele ano. Era, por assim dizer, uma viagem-prêmio. De fato, dois meses depois de seu retorno a Portugal passou o cargo para o Almirante Américo Thomaz.

Portugal era comandado, de fato, por Antonio de Oliveira Salazar, nomeado Ministro das Finanças em 1928 e que havia assumido o posto mais alto do poder, como presidente do Conselho de Ministros, alguns anos depois. Salazar manteve-se à frente do governo até 1968 quando passou a sofrer de doença cerebral em conseqüência de uma queda. Morreu em 1970 sem ver o fim do regime que tinha comandado por tanto tempo, derrubado pela “Revolução dos Cravos” no histórico 25 de Abril de 1974.

Ainda era grande, naquela altura, a presença no Brasil de cidadãos nascidos na terra de Vasco da Gama. Ninguém havia esquecido a extraordinária figura de Carmen Miranda, portuguesa da Beira Alta, morta dois anos antes quando ocupava no ápice de sua carreira como intérprete da musica popular brasileira. Os jornais registravam o fluxo contínuo de personalidades no mundo artístico português como a fadista Amália Rodrigues, a atriz Beatriz Costa e muitos outros que tinham grande acolhida entre o público português que aqui vivia e entre os próprios brasileiros. Alguns por aqui ficavam dando seqüência às suas carreiras e ao restante de suas vidas. Outros voltavam não sem fixar o Brasil – ou os brasileiros – em suas vidas, como foi o caso de Beatriz Costa que se casou com um empresário de São Paulo. Ou, ainda, como que para coroar a intensidade dessa união, o caso do banqueiro português que se apaixonou e casou com a mais bela brasileira daqueles tempos, a baiana Marta Rocha.

A maior parte da colônia estava justamente no Rio de Janeiro, atuando nas mais diversas atividades, mas ocupando espaços bem característicos, como o das padarias, quase cem por cento lusitanas. A seguir, ou talvez no mesmo nível das padarias vinha o Vasco da Gama, tradicional clube de futebol do Rio de Janeiro, com uma legião de torcedores que incluía todos os estratos sociais da capital.

A presença no mundo religioso, assistencial ou cultural também era fator de destaque da comunidade lusitana. Havia a Beneficência Portuguesa, um dos mais completos hospitais da cidade, a Ordem Terceira e o Real Gabinete Português de Leitura. Acima de tudo, a igreja de Nossa Senhora da Candelária, pela sua história e localização geográfica muito particular, na esquina formada pelas duas mais importantes avenidas da cidade, a Presidente Vargas e a Rio Branco, era um dos marcos mais conhecidos do povo carioca.

Por mais que fosse disputada a agenda do ilustre visitante não poderia deixar de incluir uma missa solene na Igreja da Candelária. Foi marcada para o domingo, nove de junho, ao meio dia, a ser oficiada pelo Cardeal Dom Jaime de Barros Câmara. Para mais, o programa foi incluído na agenda oficial, o que exigia também a presença do chefe do governo brasileiro, o Presidente Juscelino.

No dia marcado a Candelária se encheu de gente logo cedo. Lá estava todo o efetivo da Irmandade e das instituições por ela mantidas, inclusive o Gonçalves de Araújo presente na sua totalidade: as freiras, professoras e os internos: meninos e meninas. Boa parte das meninas, minha irmã entre elas, fizeram parte do grande coro que se apresentou durante a missa. Eu e meus colegas coroinhas fomos chamados para ajudar no altar.

Ficamos assustados com a responsabilidade de participar de um evento tão importante, com a presença de dois presidentes. Até a hora da missa começar eu ficava imaginando como seriam suas expressões, como estampariam o poder e a importância que tinham.

Mas na hora da cerimônia a surpresa foi ainda maior: estávamos a menos de dois passos de JK e Craveiro e das respectivas primeiras damas. Ambos tinham sido colocados lado a lado, juntamente com as esposas, a poucos metros do altar-mor.

Por estarem assim tão perto pude observá-los várias vezes e registrar suas fisionomias. Ambos tinham o mesmo tipo físico e pareciam ter quase a mesma idade. Na verdade Craveiro tinha 63 anos, oito anos mais velho que JK.

As missas daquele tempo não eram eventos muito apropriados para que se pudesse examinar muitos detalhes de quem as assiste, qualquer que fosse a importância ou destaque da pessoa em causa. Como todos os fiéis, deveriam ajoelhar-se ou ficar de pé, ou sentado, conforme as exigências do ritual. Só era necessário movimentar os lábios para dizer, em coro, os “Améns” ao final das preces ou para, num momento mais solene, receber a comunhão. No resto do tempo eram apenas espectadores. Era uma solenidade em que políticos não deveriam se sentir muito à vontade, acostumados a terem sempre a prerrogativa de discursar e de fazer de suas palavras o centro das atenções.

Para nós, apesar da oportunidade que nos colocava tão próximos daqueles personagens, não havia muito que ver ou interpretar daquelas figuras estáticas. Não era possível discernir nenhum sinal que caracterizasse o poder que deveriam ter ou suas qualidades morais ou suas habilidades políticas apenas pelos trajes que vestiam, um civil, outro militar. JK manteve uma aparência distante, como seus pensamentos estivessem longe dali. Parecia cansado. Craveiro Lopes, por sua vez, dava a impressão de estar mais envolvido com o ambiente e com o que se passava à sua volta. Parecia contente pela forma como estava sendo recebido. Talvez suas fisionomias refletissem de certo modo as responsabilidades que pesavam sobre cada um.

Felizmente, apesar de longa e solene, a missa decorreu sem qualquer imprevisto nas nossas atividades de coroinhas. Na verdade nosso papel foi pouco mais que decorativo porque o cardeal que celebrou a missa esteve sempre apoiado por vários padres que atuaram como acólitos. Ficou-nos a tarefa de, nos dias seguintes, responder às perguntas dos colegas sobre tudo o que eles imaginavam que pudéssemos ou não ter enxergado nas ilustres figuras presidenciais.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Leituras

A curiosidade é uma das maravilhas da espécie humana. Depois da saudade da família o que mais eu sentia no internato era a limitação do exercício da curiosidade pela carência de informações e de novidades que a estimulassem. Aquilo acabava acentuando a sensação de exclusão do mundo.

Volta e meia alguém levava um jornal para o colégio. As freiras liam, faziam comentários entre si, mas era difícil entender o conteúdo daquelas conversas. As crianças não tinham acesso aos jornais. Melhor dizendo, só tínhamos acesso aos seus fragmentos. Era quando precisávamos de papel para ir ao banheiro. Para não onerar o orçamento as freiras recortavam os jornais velhos em pedacinhos e nos davam meia dúzia deles cada vez que tínhamos que ir fazer as nossas necessidades. Com alguma sorte conseguíamos juntar dois pedaços de uma mesma página e encontrar alguma novidade interessante. Eram sempre lidos e relidos com muita atenção. Quando não dava para entender, tentava-se advinhar. Líamos desde os pequenos anúncios, necrológios, até as corridas de cavalos. Nada escapava. Com sorte ganhava-se uma tirinha do Pinduca, ou do Reizinho.

As outras formas de obter informações acabavam nos sujeitando a riscos e punições. Um dia acabei passando por uma experiência dessas.

O episódio aconteceu em 1957, na época em que a Irmã Alegria estava doente. Quando ela foi para o hospital algumas funções tiveram de ser redistribuídas. No horário das refeições, por exemplo, era costume a Irmã Alegria ficar no andar de cima, de plantão, para atender algum eventual chamado de telefone ou do portão. As outras freiras desciam para o refeitório junto com a criançada. Assim, na ausência da Irmã Alegria foi preciso escalar algum dos meninos maiores para que assumissem aquele papel. Como eu fazia parte desse grupo e gozava de bom conceito com as freiras quase sempre era escolhido. Claro que à custa da fome encompridada. Depois, em compensação, servia-me à vontade.

Num desses plantões encontrei sobre a máquina de costura que ficava na sala onde tinha que guardar o meu posto, um exemplar de “O Cruzeiro”. Naquela época era a revista de maior circulação no país, famosa por ter introduzido e explorado ao máximo as técnicas do foto-jornalismo: quanto maior a foto, maior a polêmica ou o escândalo, ou vice-versa. O exemplar havia sido deixado por um sobrinho da Irmã Vicência, o Elias, que fazia faculdade e que freqüentemente ia visitar a tia.

Curioso para saber o que acontecia no Rio de Janeiro e no resto do mundo, mas também para esquecer a barriga vazia, pus-me a folhear a revista a começar pela sempre engraçada página de “O Amigo da Onça”. E assim o tempo passou sem que eu desse por ele. Quando um colega me veio dizer que já podia descer para almoçar, fechei a revista e recoloquei-a onde a tinha encontrado. Já o almoço e o recreio me haviam feito esquecer da revista e do que nela tinha visto quando fui chamado à presença da freira. Ela me aguardava na sala, de pé, ao lado da máquina de costura. Estava brava: dera-se conta de que o objeto da minha curiosidade não estava exatamente no lugar em que fora deixada e tinha deduzido que eu havia lido a revista.

Até ai não achei que o assunto fosse grave. Uma bronca, um puxão de orelha, talvez. Não podia imaginar que ler uma revista tão popular e que servia de leitura para as freiras e seu sobrinho fosse algum pecado. Foi preciso que as freiras explicassem, não sem algum constrangimento, que aquela revista em particular continha muitas fotos do carnaval e fotos de muitas pessoas com roupas inadequadas para entrar num colégio de freiras, muito menos para serem vistas pelos olhos de um garoto que deveria se conservar inocente. Tentei argumentar, mas de nada adiantou. Tomei um baita sermão e fiquei sem direito de assistir à próxima sessão de cinema.

Nessa época eu já tinha onze anos, uma idade em que já se sabe um pouco de muita coisa e que se quer saber mais ainda. Idade suficiente para se ter algumas noções de certo e errado e de justiça. Achei que se me consideravam bom aluno e bem comportado a ponto de justificar que as freiras me dessem encargos maiores, essas condições deveriam também contar a meu favor, para minhas faltas ou deslizes. Talvez tivessem reconsiderado se eu soubesse argumentar melhor meus pontos de vista. Mas não soube e daí minha frustração. Chorei, ressentido, achando que o fato de não me terem dado o crédito que eu entendia merecer era castigo pior do que ter ficado sem cinema.

De qualquer forma a curiosidade não morreu ali. Mas ficou a lição: depois disso nunca mais deixei de prestar muita atenção no lugar e na posição em que as freiras esqueciam os novos exemplares de « O Cruzeiro ».

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A morte da irmã superiora

A morte era algo distante, como quase tudo o que acontecia no mundo real fora do colégio. Mesmo assim chegavam até nós as notícias mais trágicas envolvendo pessoas famosas, como o suicídio de Vargas em 1954 e a morte de Carmen Miranda, no ano seguinte. Foram casos que comoveram todo o Brasil e as freiras os comentavam entre si ou com as professoras.

Ali dentro a preocupação era apenas com o destino das nossas almas. Tínhamos que fazer o que a religião nos ensinava para merecermos sempre o reino dos céus. Mas era uma preocupação para dali a muitos anos. Criança não podia morrer, pelo menos não devia. Natural, isso sim, era que uma pessoa idosa ficasse doente e depois morresse.

E foi assim que, um dia, a morte veio bater à porta do colégio. Foi em 1957. Veio buscar a Irmã Alegria, nossa diretora. Ela era mesmo a pessoa mais velha do internato.

Ficamos sabendo que ela estava doente ainda no primeiro semestre daquele ano porque durante vários dias ela não saía do seu quarto. Seria uma indisposição segundo as outras irmãs. Depois veio o médico e receitou-lhe alguns medicamentos. O quadro deve ter piorado porque a levaram para um hospital no Matoso, que pertencia à congregação das vicentinas. Nós não sabíamos exatamente de que mal ela sofria. Mas desconfiávamos que era alguma coisa grave. Na hora das orações rezávamos sempre pelo seu restabelecimento.

Em julho ou agosto ela voltou ao internato. Estava muito mais magra e pálida. Sua aparência era extremamente frágil e parecia até que era o pesado hábito que a mantinha de pé. Sua voz era um fiapo e já não conseguia reproduzir a autoridade da madre superiora e da severa professora do 3º ano.

Viera apenas para se despedir. Depois de algumas semanas voltou para o hospital. Faleceu no dia 6 de setembro. Tinha 75 anos de idade.





O santinho que marcou o falecimento da Irmã Alegria.


Depois da morte da irmã Alegria é que ficamos sabendo que ela tinha câncer, então considerada uma doença muito grave e fatal. Alguns meninos diziam conhecer casos na suas famílias. Contavam que era uma coisa terrível, um tumor que devorava as pessoas por dentro, até a morte. Que geralmente dava em pessoas mais velhas, mas em crianças também. Diziam ainda que era contagioso e algumas outras bobagens. Aquelas conversas  arrepiavam e enchiam a todos de preocupação.

Depois desse episódio nunca mais se ouviu falar em morte no colégio. Irmã Vicência e irmã Luiza, deixaram o internato nos anos 70, com muita saúde, e tiveram as duas vidas longas. A irmã Vicência passou dos cem anos, e a irmã Luiza, chegou perto dessa marca.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Uma professora muito especial

Quando eu ainda vivia em Portugal havia freqüentado um jardim de infância que funcionava na casa de uma senhora vizinha. Tinha de usar um guarda-pó sobre a roupa, como uniforme, e carregava comigo uma pequena lousa para rabiscar as letras ou desenha. Era um quadro-negro portátil. Mas foi por pouco tempo e não cheguei a aprender grande coisa. No Brasil, ao completar sete anos, ainda estávamos em fase de adaptação e a prioridade da família era encontrar uma casa para morarmos e buscar alguma forma de sustento. A escola teria que esperar.

As lousas antigas, da minha primeira escola em Portugal.
A foto "L'information scolaire, Paris, 1958"
é de autoria do francês Robert Doisneau (1912-1994),
obtida no site www.robert-doisneau.com, em 24/07/2010 

A curiosidade é que não esperou. Era meu vizinho o primo Affonso, quatro anos mais velho que eu e já bem adiantado na escola. Como ele era filho único, meu irmão e eu éramos os seus companheiros de brincadeiras. Na rua e em casa. E quando ele tinha que fazer os deveres de escola eu pedia para ficar ao seu lado na mesa desenhando ou rabiscando qualquer coisa. Dava-me algumas folhas de caderno e, brincando, foi assim que aprendi as primeiras lições. Começou por me passar palavras para copiar e a me ensinar aritmética, que era o que eu mais gostava. Com o passar do tempo já resolvia com rapidez os problemas mais simples e logo lhe pedia outros. Assim, aproveitando os lápis, papel e a paciência do Afonso, quando entrei no Educandário já sabia ler, escrever e fazer as quatro operações. Aprendia brincando. O primo Affonso acabou por se tornar o meu primeiro professor.

No Gonçalves de Araújo tive apenas três professoras. Dona Glorinha (Maria da Glória, já não me lembro o sobrenome), da 2ª série, era a paciência e a bondade em pessoa. Na 3ª série foi a vez da Irmã Alegria, muito severa. Os anos já lhe pesavam e não tinha tanta paciência;  mais cobrava do que ensinava. Foi a dona Maria Luiza  (Feijó Figueira), na 4ª série, a primeira professora de verdade, a professora das lições mais difíceis.

Tinha cerca de cinqüenta anos. Muito magra e sempre vestida com sobriedade aparentava ser uma mulher frágil. Mas a sua energia parecia inesgotável quando assumia o seu papel de professora na sala de aula. Apesar de sermos apenas cinco alunos, pobres e de futuro duvidoso, ela se empenhava como se fosse a missão da sua vida. Em troca, exigia nossa dedicação. Era rígida com a matéria sem ser severa com os alunos. Mas não ficava por aí. A sua forma de nos envolver com as lições tinham o dom de nos ajudar a esquecer que estávamos no internato, distantes de casa e da família. Eram exigências novas, perguntas novas, desafios mais complexos e estimulantes do que os da convivência diária sob a rígida e monótona rotina do colégio. Sempre nos trazia novos livros, a pretexto de premiar nosso desempenho nas provas mensais. Livros que nos forneciam combustível para fazer voar nossos pensamentos para fora daqueles muros.

Sua dedicação acabou por ter um papel marcante naqueles primórdios da minha vida de estudante. Muito atenta ao desenvolvimento do grupo, foi ela que percebeu minhas afinidades com a matemática. No início do segundo semestre resolveu convencer as freiras a me inscrever num concurso que havia na época, ao estilo das atuais “olimpíadas de matemática”. Tanto insistiu que as freiras acharam que eu talvez tivesse alguma chance e foram levar o assunto para o Provedor. Veio a autorização e assim fui inscrito como representante do internato.

A primeira etapa era regional e envolvia os alunos das escolas de São Cristóvão e bairros vizinhos. Alguém me levou para a escola onde seria feita a prova, num local desconhecido e no meio de pessoas e crianças que nunca tinha visto. A única coisa familiar eram o lápis, o papel e a matéria da prova.

Algumas semanas depois a Irmã Vicência foi me chamar no pátio de recreio dizendo que a Irmã Alegria queria falar comigo. É que tinha chegado a notícia do resultado da tal prova e estava classificado para participar da próxima etapa. Tirara o 1º lugar. Fiquei contente e as freiras também, mas ninguém ficou mais feliz do que a minha professora. As freiras me elogiaram e a Irmã Alegria me deu como prêmio um medalhão de Nossa Senhora das Graças, numa moldura de plástico leitoso, desses que ficam visíveis no escuro.


Na segunda etapa participavam os melhores colocados em todas as regionais do então Distrito Federal. Já não me senti tão deslocado quando tive de ir para um outro local, com outras pessoas, para a última prova. Só que agora tinha medo do resultado. Não fui tão mal: fiquei com o 3º lugar.

Naquela época minha mãe vivia em São Paulo e por isso ela só ficou sabendo do episódio por uma carta que lhe escrevi, todo prosa, embora com termos contidos porque tinha que ser submetida à censura das freiras. Fui encontrar essa carta muitos anos depois, entre as lembranças que minha mãe havia conseguido guardar daqueles anos atribulados.

Algum tempo depois ocorreu o evento de premiação, no teatro João Caetano. Estavam lá a Olímpia e a tia Alice. Ganhei uma coleção de livros do Monteiro Lobato.

Aquela experiência foi uma revelação de algo que eu era capaz de fazer bem e ser por isso reconhecido. Uma revelação que eu devia à minha professora. Dali por diante o meu mundo ganhava uma nova dimensão e o tempo parecia passar mais depressa.

A 1ª página da cartinha enviada para minha mãe comunicando os resultados do concurso

sábado, 24 de julho de 2010

A peste


Durante minha estada no internato poucas lembranças ficaram de doenças que nos tivessem afetado. O único caso foi quando começamos a aparecer com feridas nas pernas, que coçavam muito e não cicatrizavam. Com o passar dos dias mais meninos ficavam contaminados. Passamos um mau bocado com as incomodas feridas que não saravam por mais mercúrio-cromo e pomada “Minâncora” que se aplicasse. Depois de algumas semanas sem resultados as freiras fizeram vir um médico que logo identificou se tratar de impetigo. A medicação, à base de banhos de permanganato foi eficaz e a cura rápida. Foi logo no início do ano e terá vindo incubado em algum de nós no retorno das férias.

O caso de doença mais relevante foi uma infecção de ouvido que um dos meninos contraiu e que as freiras não conseguiram curar com os remédios caseiros. O coitado não reclamava, mas todo muito ficava incomodado pelo visual que resultava. Tiveram que chamar o médico e por alguma razão o garoto teve de ir para casa. Voltou meses depois, curado.

Os resfriados eram relativamente freqüentes, mas sempre sem conseqüências. Em 57, porém, ocorreu um surto de gripe que deixou todo mundo assustado. Era a chamada “gripe asiática”. Eu tinha ouvido de minha mãe as estórias que os tios dela lhe contaram sobre a “gripe espanhola” que havia matado milhares de pessoas no Rio de Janeiro e milhões no mundo todo. Matou até o presidente Rodrigues Alves, já eleito mas que não chegou a tomar posse. Isso no distante ano de 1918. Felizmente a “asiática” era um vírus menos violento e não chegou a cruzar o portão do colégio. Mesmo assim teria vitimado cerca de um milhão de pessoas mundo afora.

Apesar do constante sobe e desce pelas escadas, das brincadeiras no recreio e da arriscada prática de “esquiagem” nas varandas ensaboadas, em dia de faxina, nenhum de nós sofreu qualquer fratura ao longo daqueles anos. Parece que todos tínhamos um bom anjo da guarda.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

O teatro

Em 1956 aconteceu a Olimpíada de Melbourne, na Austrália. Foi quando Ademar Ferreira da Silva conquistou o bicampeonato no salto triplo. Era um feito que amenizava o sentimento de frustração com o fracasso no futebol em 50 e 54. Talvez estimulado por aquele evento o colégio recebeu pouco tempo depois uma professora de ginástica. Jovem e cheia de idéias dedicou-se com afinco para nos ensinar exercícios físicos, mas, também, novos jogos e brincadeiras. A certa altura conseguiu convencer as freiras a montar uma peça de teatro para ser encenada pelos alunos. A peça era, na verdade, uma apresentação de ginástica artística infantil.

A realização do projeto exigiu muito trabalho. Tanto com a montagem, como, principalmente, com os ensaios. Passamos várias semanas nessa lida. A idéia era montar um palco no salão grande do segundo andar, um dos que estavam permanentemente fechados. Carecia, portanto, espantar as baratas e obrigar as aranhar a mudar para outro lugar; fazer uma limpeza em regra.
Como a maioria das dependências do colégio, o salão tinha piso de taco de madeira. Varrer o pó acumulado seria fácil, mas ia dar um trabalhão encerar e lustrar aquilo tudo na base do escovão. A causa, entretanto, era boa e muitos estavam dispostos a enfrentar a tarefa. Fui escalado para o pelotão encarregado da missão. Uma surpresa nos esperava.

Assim que entramos e começamos a abrir portas e janelas levamos um baita susto: dezenas de pulgas pularam para as nossas pernas e puseram todo mundo em retirada. Refeitos do susto a reação não tardou: alguém inventou a brincadeira de ver quem pegava mais daqueles bichinhos. Mas elas eram mesmo muitas e nos puseram para correr outra vez. Com as pernas cheias de picadas tivemos que apelar para as freiras e pedir equipamento pesado: as bombinhas “Super Flit”, com inseticida a base de DDT.

Ninguém sabia exatamente de onde tinham vindo tantas pulgas, mas as suspeitas recaíram sobre a pequena Yale, a cachorrinha das freiras.

Chegou enfim o grande dia da apresentação. A sala estava cheia, com as famílias dos alunos, as professoras e o pessoal da Irmandade da Candelária.

Eu participava em um grupo que tinha que fazer algumas manobras e formações pelo palco. Vestíamos calção azul e camiseta branca sem mangas e cada um de nós levava um par de alteres coloridos para com eles fazermos os movimentos ensaiados. Eram leves e pelo barulho que faziam quando se chocavam pareciam ser de madeira. Apesar dos ensaios, a coordenação coreográfica do grupo deixava muito a desejar. Nossos alteres nunca se chocavam ao mesmo tempo. Parecíamos um grupo de tocadores de castanholas destrambelhados.

Apesar das nossas muitas falhas todos ficaram satisfeitos pelo resultado. Mesmo sem me sentir à vontade naquele palco – para os meus parcos dotes artísticos já bastava ter de desempenhar o papel de coroinha todos os fins de semana – a experiência mexeu com a nossa cabeça. Foi realmente algo que deve ter ficado na memória de todos.

Pena que a professorinha tenha ficado pouco tempo conosco. Mas enquanto lá esteve foi como uma rajada de vento fresco.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Férias

O período de férias significava o retorno à vida livre, aos pés descalços e às corridas ladeira abaixo na “Escadinha”. De ir todos os dias à casa do tio Antonio, para buscar o pão e o leite. Ou pedir uma porção de cubos de gelo para refrescar o suco de tamarindo que havíamos catado na Julio Furtado. De ir assistir com os primos o Teatrinho Trol e depois o futebol na tevê da tia Isabel. E, na volta, passar de visita na casa da vovó Olívia para ganhar uma refrescante “Grapette”. De cortar o cabelo à “Príncipe Danilo” na barbearia do seu Artur e esquecer o corte “franjinha” que nos faziam no colégio. De ouvir, à noite, no rádio, as histórias de “Jerônimo, o Herói do Sertão” e as piadas do “Balança-mas-não-cai”. De soltar pipa e de ir com o Afonso pelos terrenos baldios colocar armadilhas e arames com visgo para pegar biquinho-de-lacre. De disputar o campeonato carioca e até a copa do mundo jogando botão com meu irmão e meus primos. De jogar bola com os vizinhos da rua. De brincar de amarelinha e de pique com as meninas.

Logo vinha o Natal. Sempre arranjávamos uma árvore pequena porque dos enfeites que tínhamos trazido de Portugal poucos haviam se salvado. Completávamos a ornamentação com jilós embrulhados em papel prateado. Tínhamos também um pequeno presépio de papelão para colocar no pé da árvore. Estava pronto o cenário para esperar o Papai Noel. No dia 24 minha mãe nos fazia colocar os sapatos na janela, ainda seguindo a tradição portuguesa, e de manhã lá encontrávamos qualquer coisa que ela havia conseguido comprar. Depois íamos fazer a visita ao tio Antonio levando as rabanadas que minha mãe era especialista em fazer. Lá, então, sempre ganhávamos brinquedos de verdade.

Depois do Natal vinha a temporada das visitas. Ir à casa do tio Damião em Marechal Hermes era um dos programas que minha mãe fazia questão de fazer nas férias, quando podíamos ir todos juntos. Ele era um dos muitos irmãos do pai dela e tinha vindo há muitos anos para o Brasil. Arranjou casamento e por cá se deixou ficar. Mais tarde adotaram um menino, o Paulinho. Moravam numa casinha simples cedida pelo patrão e tentavam reproduzir, no subúrbio do Rio, o estilo de vida da sua aldeia em Portugal. Naquele tempo ainda era possível. Tinha um par de vacas que lhe ajudavam a preparar um pequeno espaço de terra onde plantava alguma coisa e, principalmente, para puxar uma carroça com que fazia transportes de materiais para as obras que iam aos poucos se multiplicando nas vizinhanças. Eu gostava de lá ir, mais que tudo, para ver e colocar as mãos nos animais e relembrar os passeios em carro de bois quando ia visitar os parentes no interior de Portugal.

Um outro fim de semana era para ver a Cléa, prima da minha mãe. Ás vezes íamos na casa deles, no Campo dos Afonsos, mas gostávamos mesmo era de ir até a Praça Saens Peña, na Tijuca onde o marido dela trabalhava com um carrinho de pipocas. Era um ponto muito bom porque ali havia quatro ou cinco cinemas e o movimento era grande.

Por fim, chegava o carnaval. Embora minha mãe não fosse simpatizante de Momo fazia questão de dar uma espiadela no que acontecia pela cidade. No domingo de carnaval íamos todos dar uma volta de bonde até o centro, apreciando os pequenos blocos que se improvisavam aqui e ali ao longo dos bairros por onde íamos passando. No centro sempre havia mais agitação, blocos maiores, bandinhas “fuzarcas” repetindo as marchinhas famosas da época, mas tudo ainda relativamente calmo. Quase sempre São Pedro mandava um banho de água fria para refrescar o chão escaldante e as cabeças mais entusiasmadas pelos efeitos dos lança-perfumes, que naquela altura ainda eram utilizados sem restrições por foliões de qualquer idade.
O fim do carnaval prenunciava o retorno ao colégio.

terça-feira, 25 de maio de 2010

O telefone não fala!



Logo que a capela do colégio foi inaugurada alguns arranjos tiveram de ser feitos. É que todas as freiras queriam participar das orações do final do dia naquele novo espaço. O órgão já estava instalado no centro do coro e a Irmã Alegria e a Irmã Vicência se revezavam para tocá-lo. O problema é que a secretaria ficava a descoberto. Se o telefone ou a campainha da rua tocasse ninguém ficaria sabendo. A solução foi escalar um aluno para ficar de plantão enquanto todos iam para a capela. Um belo dia coube-me exercer essa função.

Acho que até aquela data nunca tinha feito a experiência de falar ao telefone. Claro que já conhecia o aparelho, mas só de vista. Tinha um na casa da vovó Olívia, no Grajaú, que era muito usado pela família. Eu até já sabia o seu número de cor, de tanto ouvi-la repetir no seu sotaque minhoto amenizado pelos quase quarenta anos de Brasil: « Aqui é o tresóito-quatruóito-nobecinco ». Todo mundo ia lá, ouvia, falava, parecia muito fácil. O do colégio era igual. Portanto eu não tinha o menor motivo para reclamar da convocação. Nem achei que era necessário dar a conhecer minha falta de experiência prática. Ia perder as orações sim, mas poderiam ser adiadas para outra ocasião. Afinal, seria divertido ficar ali, com um tempo extra para fazer a imaginação voar.

Pelo que eu já sabia era raro alguém ligar para o colégio. As famílias dos internos não tinham permissão para fazê-lo a não ser em circunstâncias muito graves. Mais raro ainda era soar a campainha do portão. Assim, no meu primeiro dia de plantão tudo ia muito bem, e só se ouvia o ruído abafado das orações na capela. Até que o inesperado aconteceu: o telefone tocou. « Que sorte! » pensei, « Justo no meu primeiro dia de plantão! » E lá fui às carreiras, tropeçando em tudo que havia pela frente, ao encontro do aparelho. Respirei fundo e caprichei para dizer « Alô!». Não podia sair fraquinho, nem gritado, nem tremido. Tinha que sair natural, da mesma forma que todo mundo fazia... O telefone continuou em silêncio... « Alô » repeti, com ansiedade. O mesmo silêncio... Foi aí que descobri não ter certeza de qual dos lados do aparelho era para escutar e qual para falar. Fácil, era só inverter a posição. Não funcionou, o telefone continuava mudo.

Por mais que eu alternasse as posições não conseguia escutar nada mesmo. Entrei em pânico, sem saber o que fazer... Meu dia de estréia no mundo da tecnologia das comunicações estava se transformando num total fiasco.

Foi então que, em desespero, resolvi dizer para aquela coisa que esperasse e, em seguida sai correndo chamar a freira. Ela ia me perguntar quem era e eu tinha que dizer a verdade: que não sabia. Mas como não tinha outro jeito, antecipando o vexame, fui assim mesmo e disse-lhe que o aparelho devia estar com problemas por que não falava. Acho que ela não acreditou pois voltou comigo “elogiando” o tempo todo a minha incompetência. Ela pegou o telefone como sempre fazia e falou e ouviu o que se dizia do outro lado. Fiquei vexado, claro, pela bronca e principalmente por não ter atinado com o que efetivamente tinha deixado de funcionar.

Depois de algum tempo tive uma nova oportunidade. Nesse meio tempo eu já tinha revisado todas as possibilidades de solução caso o problema se repetisse. Mas era improvável. Por que só comigo? Mas aconteceu! Novo apuro, novo vexame... Mistério.

Os companheiros ficaram sabendo da história e engrossaram a chacota por causa das minhas orelhas de abano, grandes mas incapazes de ouvir ao telefone.

O fato é que quando a coisa se repetiu pela segunda vez as freiras quiseram tirar a coisa a limpo. Experimente assim, faça desse outro jeito... Até que... Heureca! Nada de errado com o aparelho, era mesmo o meu ouvido que não funcionava!

Como eu era destro era natural que pegasse o aparelho com a mão direita e o levasse ao ouvido direito, que não funcionava. O do lado esquerdo era normal, ouvia perfeitamente, e por isso, no dia-a-dia, nem eu nem ninguém se dava conta do problema. Afinal, quem iria imaginar que aquele menino de orelhas grandes tinha problemas de audição.

O caso ficou por isso mesmo. Eu não tinha nenhuma infecção ou problema visível que exigisse cuidados médicos de urgência. Talvez fosse problema congênito. Só anos mais tarde é que tive condições de consultar um especialista. Pensei que o problema tivesse conserto. Através de um exame de audiometria se constatou que o nervo auditivo estava completamente inoperante. “Você teve sorte por só ter sido afetado num dos ouvidos” disse-me o médico. “Não posso garantir, mas é muito provável que tenha sido uma conseqüência do sarampo” completou.

De fato eu havia contraído a doença logo nos primeiros dias da minha chegada no Brasil. Naquela época ainda não existia a vacina, só descoberta em 1963, e por isso o sarampo costumava deixar seqüelas.

Com o tempo me acostumei com a situação. A adaptação exigiu aprender um pouco de leitura labial e a posicionar-me sempre para que meus interlocutores ficassem do meu lado esquerdo, onde eu pudesse ouvi-los direito. Só não consegui aprender a dançar. Era impossível manter a conversa com o meu par falando no meu ouvido direito. E se mantinha a conversa não acertava o passo!

terça-feira, 18 de maio de 2010

Em tempo de eleições: o cearense Juarez e o mineiro JK



No ano de 54 o presidente Getulio Vargas havia cometido suicídio. Nunca me esqueci daquela data porque era também o do aniversário de minha mãe: 24 de agosto.

Mesmo sem ter idade para entender a importância daquele episódio e apesar do isolamento do internato, dava para sentir que o ambiente não estava nada tranqüilo. Víamos as expressões preocupadas dos adultos à nossa volta e ouvíamos os comentários que as freiras faziam entre si. Muito barulho havia ocorrido nos meses que antecederam o fim do governo Vargas, ao compasso das acusações que Lacerda fazia na imprensa. Estávamos na capital do país. A sede do governo e o centro daquela agitação política não ficavam a mais de uma dezena de quilômetros de onde eu estava.

A política voltou a esquentar no ano seguinte por conta do processo eleitoral que escolheria o sucessor de Vargas. Um dos concorrentes era o Juarez Távora, um militar cearense que havia sido um dos tenentes de 1922, do episódio da revolta do Forte de Copacabana. E foi por causa desse ilustre cearense que nós passamos a ouvir falar um pouco mais de política ali dentro. É que Távora tinha na Irmã Vicência, sua conterrânea, uma defensora fiel e propagandista dedicada. Elogiava principalmente a retidão de princípios e qualidade moral que ela achava serem predicados próprios dos militares.

A opção por um militar tinha as suas razões naquela altura. A Grande Guerra era ainda um episódio recente e dera aos homens de farda ampla presença política e prestígio em todo o mundo, pelo menos do lado dos vencedores. No Brasil, pouco antes da candidatura de Juarez, Gaspar Dutra, outro general, havia sido eleito presidente pelo voto popular. Anos mais tarde, na eleição para escolher o sucessor de JK, o general Lott também decidiu enfrentar o desafio das urnas, perdendo para Jânio.

Juarez, ainda segundo a Irmã Vicência, era o homem certo, por ser cearense, para por fim ao sofrimento do povo nordestino com o flagelo das secas.

Apesar da sua torcida e das suas muitas orações Juarez acabou perdendo, embora por pequena margem, para o mineiro Juscelino, conterrâneo da Irmã Luiza, que evitou comemorar para não alimentar polêmicas.

Pouco antes da posse de JK nova confusão, envolvendo Café Filho, vice de Getúlio, Carlos Luz, que era o presidente do Senado e seu vice, Nereu Ramos, além de Lacerda e os militares pelo meio da história. Apesar de todo o falatório sobre o assunto eu não fazia a menor idéia do que se estava passando. Só via que os adultos estavam preocupados com a instabilidade “provocada pelos políticos” e que almejavam novamente um “ato patriótico” dos militares para recolocar o país nos eixos.

A idéia que então eu fazia da política é de que se tratava apenas um jogo entre políticos, supervisionado pelos militares.

Às vezes eu ouvia algum adulto falar contra o comunismo sem atinar com o significado daquilo. Sabia que era coisa dos russos e que todo o comunista era ateu. Aprendera, portanto, que todos os católicos deveriam ser contra o comunismo. Seria mais uma questão religiosa. Mas no internato não se falava muito do assunto. A certa altura o assunto começou a chover literalmente no nosso pátio de recreio. É que alguns teco-tecos começaram a fazer freqüentes sobrevôos sobre o bairro lançando panfletos com desenhos e mensagens anticomunistas. As freiras não impediam que pegássemos aqueles papéis, nem faziam comentários sobre as suas mensagens. Logo se transformavam em matéria-prima para aviõezinhos. Lembro, entretanto, que os desenhos procuravam passar a imagem de que os comunistas eram pessoas brutas e que queriam impor alguma coisa à força de ameaças e prisões. A figura predominante dos desenhos era uma caricatura de Nikita Krushev, que havia sucedido a Stalin após a morte deste em 1953. Não consegui descobrir o que teria motivado aquela propaganda. Talvez, olhando para os registros da história da época, tenha se relacionado com algum movimento político interno contrário à legalização do partido comunista que JK havia negociado em campanha para conquistar mais apoios à sua candidatura.



terça-feira, 11 de maio de 2010

A capela



No ano de 55 a capela do Educandário ficou pronta. Dedicada a Nossa Senhora de Fátima foi inaugurada festivamente pelo monsenhor Henrique de Magalhães que era então pároco da Igreja da Candelária. A capela era muito simples e despojada, com as paredes pintadas numa cor clara, em tom levemente azulado. No átrio, alinhavam-se duas dúzias de bancos de madeira, divididos por um corredor central. A parte superior era formada por um balcão em forma de « U » e se ligava ao piso inferior por uma escada em espiral num dos cantos ao fundo da capela. Nesse balcão foi instalado um pequeno órgão onde a Irmã Vicência demonstrava sua habilidade no manejo do duplo teclado, registros e pedais para acompanhar os cânticos que ensaiávamos todas as tardes, depois do “crieléison”, - como chamávamos a ladainha do “Kyrie”. Naquela altura ainda se rezava quase tudo em latim. O pequeno altar ficava encimado por uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, ladeada por dois anjos que, com expressão fixada no horizonte distante e como se não lhes pesasse nada, sustentavam duas estruturas de luminárias de globos.

Apesar de sua arquitetura simples a nova capela passou a ser motivo de orgulho para as freiras. É que a partir dali teriam um espaço mais adequado para fazer as orações e para a educação religiosa dos seus pupilos. Nós, as crianças, já ficamos menos contentes, pois deixaríamos de fazer o passeio matinal dos domingos para assistir a missa na Igreja de São Cristóvão e dar uma espiadela no mundo exterior. Era um passeio curto, meia dúzia de quarteirões, mas era sempre uma diversão. Íamos na velha jardineira conduzida pelo seu Luciano. Como os outros membros da irmandade da Candelária, aparecia sempre bem vestido, de terno e gravata, pequeno bigode e cabelos pretos penteados com “gumex”. Quando dirigia a jardineira tirava o paletó e ostentava uma camisa sempre muito branca. Era sempre pontual e atencioso.

O contato com outras pessoas, entretanto, não acabou totalmente: aos domingos as freiras permitiam que os vizinhos da rua assistissem à nossa missa. Ficavam ao fundo e não havia possibilidade de contato.


Pouco antes da inauguração da capela do colégio monsenhor Magalhães tratou de formar alguns coroinhas. Fomos cinco os escolhidos: o Augusto, o Luís, o Rogério, o Marcos e eu. O vai-e-vem do missal, os toques da campainha, a água e o vinho das galhetas, todo o ritual tinha que estar bem decorado para não quebrar a seqüência da cerimônia. E assim também as falas, tudo em latim, que a gente de tanto repetir ia pouco a pouco descobrindo as semelhanças com o português.

Com o início das missas na capela as freiras organizaram uma espécie de revezamento entre nós, dois a cada domingo. Nos dias de festas religiosas, como na Páscoa, atuávamos todos. Às vezes éramos convocados para participar de alguma missa festiva na Igreja da Candelária.

Eu era muito tímido e aquela exposição no altar não combinava com o meu jeito de ser. Mas as freiras tanto nos elogiavam e o monsenhor também que acabei me acostumando.

Apesar de a capela ter limitado nossos passeios ainda assim tivemos algumas oportunidades de sair para participar de eventos religiosos. Um deles foi o Congresso Eucarístico Internacional, que ocorreu em meados de 1955 sob a responsabilidade de D. Hélder Câmara. As cerimônias davam-se no aterro da Glória, no local onde mais tarde foi construído o Monumento dos Pracinhas. Na época era apenas uma área enorme em terra batida onde tinham sido montados um altar mor, numa parte alta, e centenas de bancos de madeira para atender à multidão.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Primeira comunhão

O internato não era um seminário, mas era parecido. Mantido por uma tradicional instituição católica e administrado por freiras era natural que a religião tivesse presença marcante na nossa vida diária. Rezávamos antes e depois de começar cada atividade. A primeira oração era feita ainda ao lado da cama, logo que nos despertavam. A última, antes de nos deitarmos. Isso sem contar as orações individuais que cada um fazia, pelos seus familiares, ou na esperança de se livrar de um castigo, ou por qualquer outro motivo que achássemos que só Deus, os Santos ou o nosso Anjo da Guarda nos pudessem valer.

Logo no meu primeiro ano de Educandário prepararam-me para fazer a primeira comunhão. A mim e a todos os outros na mesma faixa de idade. Ao longo do segundo semestre as freiras se revezavam no ensino do catecismo. A cerimônia aconteceu no final do ano, no dia 8 de dezembro, dia dedicado à Imaculada Conceição de Nossa Senhora. Tratava-se de um dia especial porque naquele ano completava-se o centenário da proclamação, feita pelo papa Pio IX, do dogma da Imaculada Concepção. A missa foi realizada na velha igrejinha de São Cristóvão, na Praça Padre Seve, porque a capela do colégio ainda não estava pronta. Todos estávamos a caráter, vestidos de branco, vela com laço de cetim em uma das mãos e o livro de orações na outra. Não tínhamos idéia de quanto nossas famílias tinham gastado para adquirir aqueles paramentos todos, mas isso não importava naquele momento. Desfilamos cheios de importância e orgulho pelo passo que estávamos dando. A missa, por ser um evento especial, era mais comprida do que o normal, mas pareceu-nos ainda mais longa porque estávamos todos em jejum. Ao final ganhamos um café da manhã como nunca havíamos tido antes, com chocolate, bolos, biscoitos e a presença da família: uma verdadeira festa. A festa maior, entretanto, viria logo depois: não tínhamos que voltar de jardineira para o colégio; estávamos livres para ir para casa, em férias.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Passeios e festas

Os passeios externos eram raros. Depois que se construiu a capela do colégio já quase não tínhamos oportunidade de sair. Eventualmente íamos assistir uma missa especial na Candelária. Fomos uma vez a um hospital para doentes de lepra que pertencia à Irmandade. Passeio mesmo, foi quando nos levaram para passar um dia inteiro em uma chácara, nos arredores do Rio de Janeiro. Provavelmente ficava em Nova Iguaçu, então um dos maiores centros de produção de laranjas do Brasil. A chácara deveria pertencer a algum dos membros da irmandade da Candelária. Havia espaços enormes para correr e brincar e um mundo de pés de laranjeira, todos carregados de frutas maduras. Voltamos embriagados de tanto chupar laranja e cansados de tanto correr.

Com o passar do tempo o número de alunos foi aumentando e a velha "jardineira" do seu Luciano já não comportava todo mundo.

As festas religiosas da Páscoa, São João e de Cosme e Damião eram sempre comemoradas no internato. Na Páscoa, depois da missa, ganhávamos os tradicionais ovos de chocolate que tínhamos de procurar pelo jardim logo depois da missa. O São João era mais divertido, pois tínhamos até queima de fogos, com direito a lançar, da varanda, busca-pés, estrelinhas, espirais e até soltar balão “japonês”. Era época de comer melado com farinha, como sobremesa. Mas o melhor das guloseimas ficava para a festa de Cosme e Damião quando algumas pessoas, ou da Irmandade ou mesmo das vizinhanças do internato, levavam algumas caixas de doces em pagamento de promessas feitas aos santos gêmeos, protetores das crianças. Tínhamos sobremesa diferente por vários dias.

A melhor festa de todas era, naturalmente, a festa de fim de ano. Porque logo que terminava íamos para casa, em férias. Era sempre uma festa solene, realizada num domingo, com a presença dos familiares, professoras e dos membros da Irmandade. Faziam entrega de medalhas de honra ao mérito aos melhores alunos. Davam também alguns prêmios em dinheiro que eram depositados numa conta da Caixa Econômica , mas só disponíveis quando atingíssemos a maioridade.

Essas festas ocorriam também no Departamento Feminino, onde estava minha irmã. Como eram muitas alunas, cerca de uma centena, a festa era maior. Havia inclusive uma exposição-feira onde eram colocados à venda os trabalhos artesanais que as alunas faziam durante o ano. Geralmente eram trabalhos de costura, bordados, etc. Isso porque as meninas recebiam aulas de costura e outras artes manuais, já que o colégio não oferecia o curso secundário. Minha mãe, a tia Olímpia e a tia Alice sempre procuravam comprar alguma coisa feita por minha irmã, como lembrança. Ela fazia sempre coisas muito bonitas e delicadas. Acompanhei várias vezes minha mãe e a Olímpia naquelas exposições. Enquanto desfilávamos entre as mesas onde estavam os trabalhos estavam expostos, minha mãe lamentava-se de não poder comprar todos os que a filha fizera. A tia Olímpia era mais incisiva e dizia que era uma vergonha colocarem à venda, para os próprios parentes, os trabalhos das meninas. Minha mãe contemporizava dizendo que os preços significavam que o trabalho da “sua” pequena tinha valor e que, no futuro, poderia ganhar algum dinheiro com aquelas artes e habilidades.

A festa das meninas tinha direito até mesmo a reportagem na “Voz de Portugal” um dos jornais da comunidade portuguesa. Uma vez chegaram mesmo a publicar uma foto no momento em que minha irmã recebia sua premiação. Como não conseguimos guardar o jornal, alguns anos mais tarde fui à redação e pedi a cópia daquela foto. Acharam graça e com toda a boa vontade mostraram-me um armário cheio de caixas de papelão repletas de fotos. Talvez tenham pensado que eu iria desistir e ir embora. Depois de algumas horas tive a sorte de encontrar o que procurava. Sai de lá todo orgulhoso e contente pelo achado. Foi minha primeira experiência em recuperar um pedacinho da história da família.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Na hora do recreio




Eram os recreios mais silenciosos de que eu participei. Havia, sim, em algum momento, barulho e gritos, mas não dava a impressão de que ali estivessem quase trinta crianças. Com exceção do futebol e de alguma outra brincadeira mais agitada, a maior parte dos nossos jogos era bastante silenciosa. Formávamos pequenos grupos e cada um deles se envolvia em uma atividade diferente. Além disso as freiras estavam sempre por perto, vigilantes, para impedir excessos.

O grupo maior era o do futebol, nosso passatempo preferido. Até mesmo a Irmã Luiza vez por outra participava. O problema é que as bolas eram de borracha e quicavam muito. Eram também pouco resistentes aos chutes daqueles pés inábeis e não agüentavam duas partidas seguidas. Às vezes tínhamos de improvisar com bolas de papel, mas já ficava sem graça porque não quicavam. Sem bola, o jeito era apelar para o “pique”, “pega-bandeira”, “lenço-atrás” e outros jogos da época.

Os grupos dos mais tranqüilos se dividiam entre as bolas de gude, o jogo das “pedrinhas” ou “cinco-marias”, do ferrinho e outros. Eram brinquedos simples, que nós mesmos podíamos fazer. Muito comuns também eram as pipas “ratinho”, com papel de embrulho ou de jornal, mais raramente uma folha de caderno, armada com varetas de piaçava, tudo colado com restos de arroz cozido. Alguns tinham álbuns de figurinhas. As mais difíceis entravam no mercado de trocas e as mais comuns iam para o jogo do “bafo-bafo”.

A certa altura ganhamos um conjunto de balanço e gangorras. Foi instalado no pátio externo. No começo geravam muita disputa porque todo mundo queria brincar neles.

Pátio de recreio
A foto pertence ao acervo da Candelária; é provavelmente dos anos 70,
já com o piso concretado e com o balanço recolocado ao fundo.
A hora do recreio era a hora também de colocar as conversas em dia, de comentar as provas, uma notícia de casa, o último filme do seu Sampaio, ou simplesmente contar casos e verbalizar nossos sonhos e fantasias de crianças. Havia naquele grupo um menino que tinha especial talento para contar histórias. Era o « Bolacha », um garoto gorducho e de grandes bochechas, um ano mais novo do que eu. Quando estava inspirado era capaz de manter a atenção de muitos de nós ouvindo os seus casos mirabolantes.

Nos finais de semana passávamos muitas horas também na sala de recreação. Era a ocasião para exercitarmos a leitura ou a habilidade com os joguinhos de mesa, os tradicionais dominós, pega-varetas, ludos e damas. Havia, também, uns brinquedos de armar, feitos em plástico, precursores dos atuais “lego”. Um deles era o “lig-lig”, bastante maleável, que dava para fazer muitas coisas, inclusive bolas. O outro era feito de pinos redondos, coloridos, com encaixes. Havia ainda o tradicional “Pequeno Engenheiro”, para montar casas torres e castelos, mas o mais interessante era um jogo de armar, com pequenas peças de metal furadinhas, ligadas por meio de parafusos e porcas. Chamava-se Maq-Bras, ou algo parecido, e era uma espécie de “lig-lig” de luxo. Eu olhava de longe, maravilhado com as coisas que podiam ser feitas com todas aquelas peças: torres, guindastes, caminhões, quase tudo... Não sei que fim levou. Quando fiquei maior o brinquedo não existia mais.

As freiras participavam também. Elas gostavam muito de jogar damas. Tinham um tabuleiro grande, com peças de madeira, e jogavam entre si. É um jogo bem simples e logo aprendi as regras. Fui aos poucos ganhando gosto e traquejo pela coisa e depois de algum tempo não tinha menino que me vencesse. Ia ver o jogo das freiras. Um dia me convidaram para jogar com elas. Ganhei da irmã Luiza e já todo empolgado fui enfrentar a irmã Vicência. Perdi desastradamente. Mas pouco a pouco aprendi os truques delas e a disputa passou a ser mais parelha.


sexta-feira, 16 de abril de 2010

Medos




Enquanto somos crianças o medo é uma coisa mágica que muitas vezes se manifesta de forma involuntária e inesperada em meio aos nossos sonhos. A solução é igualmente mágica: correr para a cama dos pais, onde os monstros e fantasmas estão proibidos de entrar.

No internato esses medos tinham que ser resolvidos por conta de cada um. Uns rezavam, outros simplesmente ficavam de olhos abertos até que o sono os fechasse outra vez. Outros faziam xixi na cama. Algumas vezes, instintivamente, alguém ia parar na cama de outro menino.

As noites chuvosas do verão carioca eram difíceis de enfrentar. Trovoadas intermináveis, ventanias que lançavam as chuvas sobre as vidraças das janelas do dormitório e relâmpagos que pareciam incendiar tudo em volta. Nessas ocasiões Irmã Luiza, depois de apagar as luzes, gastava um pouco mais de tempo em seu passeio por entre as fileiras de camas do dormitório para acalmar os mais assustados e dar tempo a que todos pegassem no sono. Quase sempre, nessas ocasiões, ele custava a chegar e a gente tinha que torcer para a freira ficar mais um pouquinho, dar mais uma ou duas voltas. Às vezes ela pensava que todos já estavam dormindo e ia embora para o seu quarto no andar de baixo. Jamais alguém teve a coragem de pedir para ela ficar mais um pouquinho. Seria o fim da fama do valente!

Houve um desses verões em que surgiram entre nós, as crianças, umas conversas sobre o capeta. Ninguém sabia como nem porque o assunto tinha se instalado entre nós. Durante o dia o tema até que era divertido e cada um procurava inventar uma história diferente e mais aterrorizante. Uma delas era a de que “ele” costumava aparecer na esteira dos relâmpagos e que se transformava em uma bola de fogo para levar as suas vítimas para as profundezas do inferno. Foi o bastante para muitos de nós passarmos horas de insônia. De manhã o resultado aparecia: algumas camas desfeitas e colchões tendo que ser carregados para secar na varanda. E nem sempre eram os mais pequenos.



terça-feira, 6 de abril de 2010

Leituras

Nossa biblioteca consistia de uma pequena pilha de revistas na sala de recreação. Nos dias de visitas alguém sempre trazia um novo exemplar. Raramente era novo mesmo, mas o que importava é que fosse diferente dos que já tínhamos. Vez por a Candelária enviava um pacote com novas revistas para recompor o estoque. Geralmente eram da coleção “Série Sagrada” e “Edições Maravilhosas”. Ambas eram em quadrinhos, muito bem desenhados. A primeira reproduzia as histórias dos santos e episódios religiosos. A segunda aproveitava como tema alguns dos mais famosos contos de escritores brasileiros. Eu gostava daquelas histórias e me prendia principalmente nos detalhes dos desenhos, até porque eram realmente muito bem feitos. Também tinhamos « Príncipe Valente » e a tradicional “Tico-Tico” onde estrelavam os engraçados personagens Reco-Reco, Bolão e Azeitona, criados por Luis Sá. Eram também muito disputadas as do “Pato Donald”, de Walt Disney.


Quase todas essas revistas eram produzidas ali mesmo em São Cristóvão, bem pertinho, pela Editora Brasil América. O « Pato Donald » saía pela Editora Abril, instalada no início dos anos 50.

Ganhei meus primeiros livros no internato das mãos da professora Maria Luíza, quando estava na quarta série. Ela os dava como estímulo ao estudo. Valiam ouro pelo que então significavam : davam asas ao pensamento. Eram livros sobre a história e sobre a geografia do Brasil.

Um dos autores preferidos da professora era o hoje desconhecido Francisco Marins. Ganhei “Território de Bravos”, a história da conquista do Acre pelos brasileiros comandados por Plácido de Castro que avançaram mata adentro na Amazônia para extração do látex da seringueira; aventura que resultou na incorporação do Acre ao Brasil. Do mesmo autor ganhei também “Expedição aos Martírios” que narra a história de um grupo de aventureiros que parte pelo interior do país em busca das minas perdidas.

Marins era então um jovem escritor, com pouco mais de trinta anos, e viria a produzir muitos outros textos, muitos dos quais se tornariam clássicos da literatura juvenil brasileira. “Os Segredos do Taquara-Póca”, “O Coleira Preta”, “Nas Terras do Rei Café”, dentre outros, fariam parte, décadas mais tarde, da biblioteca dos meus filhos.

Outro autor que li através dos livros da professora Maria Luiza foi Viriato Corrêa: “Meu Torrão”, “A Bandeira das Esmeraldas” e “História do Brasil para Crianças”, eram as melhores obras sobre história do Brasil para a garotada.


Além destes eu me encantava com as histórias de um outro autor, do qual também hoje pouco se fala. Era Ariosto Espinheira, autor de uma série chamada “Viagens Através do Brasil”. Ganhei o volume que falava do Rio São Francisco, das regiões que atravessava e das populações que viviam nas suas margens. Quantas vezes dormi sonhando com imaginárias viagens ao longo daquele tão decantado rio. Quando finalmente conheci o “velho Chico”, uns trinta anos depois, ele já não era mais o mesmo das narrativas que eu havia lido. Tinha sido vítima do progresso e do descuido.

Esses autores e seus livros foram, juntamente com Monteiro Lobato, os responsáveis por boa parte dos conceitos de cidadania que aprendíamos na escola. De leitura agradável e atraente, aumentavam nossa curiosidade pela nossa história, cultura, geografia e economia. Menos conhecidos, mas não menos importantes, os ilustradores desses livros agregavam um valor enorme ao texto escrito. Meus olhos ficavam atraídos por muito tempo numa mesma gravura tentando encontrar detalhes e outras histórias que o autor esquecera de contar...  

terça-feira, 30 de março de 2010

O cinema do senhor Sampaio



As transmissões de televisão no Rio de Janeiro já estavam no ar desde 1951 trazidas pelo Chateaubriand, o rei da mídia brasileira na época. Entretanto, os aparelhos de recepção ainda eram objetos de luxo e pouco acessíveis à grande maioria das famílias. O rádio era, então, o principal meio de comunicação, presente em quase todos os lares, ocupando um lugar de destaque na sala, em suas bem elaboradas caixas de madeira ou, os mais modernos, de baquelite, uma versão antiga dos plásticos. Lá dentro, um presépio de válvulas de formatos variados que puxavam pela imaginação cientifica das crianças. Os radinhos de pilha ainda estavam para chegar.

Minha mãe havia trazido um rádio de Portugal, marca GE, que pegava muito bem as transmissões internacionais pelas ondas curtas. Um dia sofreu uma pane qualquer e um vizinho prestimoso levou-o para ser consertado por um amigo. Nunca mais voltou do conserto. Mais tarde conseguimos outro aparelho, de segunda mão, não tão bonito nem tão bom de ondas curtas, mas que tinha lá dentro os mesmos personagens das novelas e do “balança-mas-não-cai”.

O rádio também estava presente no internato. Ficava num cantinho da “sala de comando”. As freiras ligavam o aparelho todos os dias para que ouvíssemos, no final da tarde, as "Histórias do Tio Janjão", um programa para crianças. Ou para ouvirmos as prédicas religiosas do Monsenhor Henrique Magalhães, o capelão da Candelária. As novelas radiofônicas embora fizessem muito sucesso não chegavam aos ouvidos dos internos. Ficava só para o período de férias, em casa. Em compensação, uma vez por mês, tínhamos sessão de cinema no colégio. Era um dia de festa.

A sessão ocorria no sábado pela manhã, sempre depois dos trabalhos de faxina e antes do almoço. Logo cedo, pela manhã, os mais afoitos não se continham e iam perguntar para as freiras se elas já sabiam qual seria o filme do dia. Lá pelo meio da manhã todos esperávamos atentos ao toque da campainha do portão que anunciava a chegada do senhor Sampaio. Ele fazia parte da Irmandade e era o responsável por trazer o equipamento e passar os filmes para nós.

Os preparativos faziam parte da festa. As freiras orientavam a colocação de cobertores nas janelas altas da sala para escurecer o ambiente. Enquanto isso o senhor Sampaio ia preparando o equipamento, conferindo os rolos da fita em suas tradicionais caixas redondas de metal. Depois começava a montar o primeiro rolo sobre o braço de suporte e a passar e repassar a fita de celulóide sobre aquele labirinto mecânico por trás da lente de projeção, até que ela saia na outra extremidade e era presa no carretel vazio.

Eu achava que era um privilégio poder ver tudo aquilo tão de perto. Nossos olhos ficavam como que hipnotizados com aquele ritual, esperando com a respiração contida o momento do teste, em que ele colocava a máquina para funcionar e os fotogramas começavam a deslizar matraqueando por entre as engrenagens. Às vezes algo não saía bem e tinha que recomeçar tudo de novo. Talvez o senhor Sampaio fizesse de propósito, para criar mais suspense ou espicaçar nossa curiosidade ou, ainda, para alertar nossa responsabilidade futura sobre o domínio das máquinas. Nem achávamos ruim quando já no meio do filme a fita se quebrava e a sessão era interrompida. Acendiasse a luz, esfregávamos os olhos e voltávamos a cabeça para apreciá-lo emendar as pontas e a recolocação da fita nas engrenagens até que elas voltassem a correr as luzes se apagassem novamente.

O senhor Sampaio fazia tudo com enorme paciência e com visível prazer enquanto fumava e conversava distraidamente com as freiras que cuidavam para que não chegássemos muito perto.

Nós admirávamos aquele personagem. Tanto por ser o responsável por aquela caixa mágica que nos trazia momentos de fantasia, mas também por ser uma figura de homem afável, quase paterna, e que nos tratava a todos com atenção. Sua imagem nunca me saiu da memória. Era um homem pequeno e magro, sempre com seu cigarro na boca e com o chapéu a esconder-lhe os raros fios de cabelo que ainda lhe ficavam nas têmporas. Apesar do calor carioca, vestia-se sempre de modo formal, com paletó, camisa branca, gravata e calças com suspensório, figurino típico dos anos 50. Sistematicamente, sempre que chegava pendurava com muito cuidado o paletó e o chapéu num cabide da parede.

A sessão de cinema era tão importante que ficar proibido de assistir a uma delas era, depois de ficar sem visita, o maior de todos os castigos. Nós éramos razoavelmente bem comportados, mas as freiras eram rígidas e não deixavam passar qualquer oportunidade para fazer lembrar-nos as regras. Vez por outra alguém ficava “premiado”. Quando isso acontecia o senhor Sampaio procurava interceder em favor do punido. Fazia-o sempre, mas acho que nunca conseguiu mudar a decisão das freiras. O castigo consistia em  ficar sentado num banquinho baixo colocado atrás da “platéia” e de costas para a tela. As freiras, por sua vez, ficavam no fundo da sala, assistindo ao filme e vigiando os punidos.

Foi nessas sessões de cinema que conheci pela primeira vez as aventuras de Roy Rogers, do Zorro e do Durango Kid, alguns dos caubóis da época cujas aventuras, depois, viravam assunto de nossas conversas e brincadeiras no recreio e povoavam a nossa imaginação na hora de dormir. Quem sabe, um dia, conseguíssemos uma máscara negra e um cavalo branco para tentar... fugir do colégio.

Eu gostava das comédias com Charles Chaplin. Passavam também muitos filmes com a dupla Gordo e o Magro e com os Três Patetas. Eles eram engraçados, mas eu não entendia a razão de tanta pancadaria como motivo para fazer rir.

Vez por outra aparecia algum filme de cunho religioso. Um deles foi “Andrócles e o Leão”, de 1952. A história se passava no tempo em que os cristãos eram atirados às feras no Coliseu para diversão dos romanos. Achei aquilo uma coisa terrível e a cena dos leões no Coliseu acabou se incorporando ao meu acervo de pesadelos de criança.

Havia fitas dramáticas, também. Um dos poucos que me ficaram na memória era uma estória em que um dos personagens, um homem casado e pai de quatro ou cinco filhos, sofre um assalto e é agredido pelos bandidos. Em conseqüência dos golpes que recebe passa a sofrer de amnésia e não consegue reencontrar o caminho de casa. Os filhos crescem desconhecendo o destino do pai e mantendo por muito tempo a expectativa de que ele um dia retornasse. O título se perdeu mas ficou o registro do enredo. A ausência da figura paterna era um drama que certamente nos tocava a quase todos. [Recentemente, Henrique, um dos companheiros daquela época, que tem ótima memória, me contou que se tratava de "Seu único pecado", com o ator Akim Tamiroff].