sábado, 16 de janeiro de 2010

Um doce verão carioca

Fevereiro de 54. Levantamos bem cedinho e em jejum fomos pegar o ônibus na Rua Barão de Mesquita. Fazia muito calor. Minha mãe ia dizendo que o hospital não era longe do Grajaú. Que ficava na região da Tijuca, perto do Estácio. Em menos de meia hora estaríamos lá. A informação não era de grande consolo. Para o que me esperava, quanto mais longe melhor. Mas meu desassossego veio logo. Eu estava naquela idade em que o labirinto ainda não se tinha acostumado às curvas rápidas e fechadas que os ônibus e lotações faziam. Tinha que andar com o nariz do lado de fora da janela para não vomitar dentro da condução.
Chegamos logo. Apesar de ser um hospital público a burocracia e a espera não foram grandes. Já estava tudo marcado com antecedência. Depois de algum tempo chamaram meu nome de dentro de uma das salas. Entramos. O cheiro forte de éter tomava conta do ambiente, mas o que assustava mais era aquela gente toda vestida de branco andando à minha volta. Logo uma enfermeira me fez ficar de pé no centro da sala e antes que eu tivesse tempo para entender o que faziam, me enrolaram num lençol, como se faziam às antigas múmias, deixando apenas a cabeça e os pés para fora. Fizeram minha mãe sair para o corredor e em seguida me sentaram e ataram numa cadeira de ferro, alta o bastante para que meus pés não tocassem o chão. Fiquei completamente imobilizado. Deram-me algo para cheirar e me puseram na boca um instrumento de metal para mantê-la bem aberta. E lá estava eu, mais branco do que o lençol, pronto para ser operado.
Alguém que estava por trás da cadeira segurou minha cabeça com força. Sem outro recurso e como já estava mesmo com a boca aberta, aproveitei para berrar tudo o que podia. Não adiantou nada. Veio o cirurgião com uma tesoura e uma espécie de colher aparadora e, num segundo, foram-se embora as perigosas amídalas.
Eu não estava doente nem tinha nada nas minhas inocentes amídalas. Era apenas uma exigência do colégio que os novos alunos tivessem de extrair aqueles inúteis apêndices. Naquele tempo considerava-se que era uma medida profilática, pois que sem as amídalas as probabilidades de pegar uma infecção mais séria por causa de uma gripe seriam muito menores. Menos doenças, menos preocupações para os responsáveis pelos alunos. Anos mais tarde se descobriu que isso não era boa ciência e a prática foi extinta.
Toda a cena não terá levado mais que dez intermináveis minutos. Esperaram que me acalmasse e me desembrulharam. O médico chamou minha mãe e lhe entregou uns papéis:
“- D. Etelvina, correu tudo bem. O menino deve ficar de repouso por dois ou três dias e evitar comidas quentes, que é para evitar sangramentos. Muita água, refresco e sorvete. Se acaso tiver febre dê-lhe os remédios que estão aqui nesta receita. E agora, já podem ir para casa.”
Ao deixarmos o hospital ainda estava choramingando, contando que eu só tinha gritado por causa do tal instrumento “abre-boca”. Dizia que me tinham prensado o lábio inferior no dente com o maldito aparelho. O que era verdade. Mas o que era mais verdadeiro é que gritar acabou sendo o melhor anestésico para agüentar a verdadeira dor, o medo.
Enquanto o ônibus fazia o trajeto de volta, minha mãe dizia, para me consolar, que logo iria pedir à Olímpia para ir comprar sorvetes, como o médico recomendara.
Mais tarde, em casa e refeito do susto, saboreando com vagar o sorvete, fazia-me de herói contando para os meus irmãos bem baixinho, que era para impressionar mais, como tinha enfrentado a cirurgia.