terça-feira, 30 de março de 2010

O cinema do senhor Sampaio



As transmissões de televisão no Rio de Janeiro já estavam no ar desde 1951 trazidas pelo Chateaubriand, o rei da mídia brasileira na época. Entretanto, os aparelhos de recepção ainda eram objetos de luxo e pouco acessíveis à grande maioria das famílias. O rádio era, então, o principal meio de comunicação, presente em quase todos os lares, ocupando um lugar de destaque na sala, em suas bem elaboradas caixas de madeira ou, os mais modernos, de baquelite, uma versão antiga dos plásticos. Lá dentro, um presépio de válvulas de formatos variados que puxavam pela imaginação cientifica das crianças. Os radinhos de pilha ainda estavam para chegar.

Minha mãe havia trazido um rádio de Portugal, marca GE, que pegava muito bem as transmissões internacionais pelas ondas curtas. Um dia sofreu uma pane qualquer e um vizinho prestimoso levou-o para ser consertado por um amigo. Nunca mais voltou do conserto. Mais tarde conseguimos outro aparelho, de segunda mão, não tão bonito nem tão bom de ondas curtas, mas que tinha lá dentro os mesmos personagens das novelas e do “balança-mas-não-cai”.

O rádio também estava presente no internato. Ficava num cantinho da “sala de comando”. As freiras ligavam o aparelho todos os dias para que ouvíssemos, no final da tarde, as "Histórias do Tio Janjão", um programa para crianças. Ou para ouvirmos as prédicas religiosas do Monsenhor Henrique Magalhães, o capelão da Candelária. As novelas radiofônicas embora fizessem muito sucesso não chegavam aos ouvidos dos internos. Ficava só para o período de férias, em casa. Em compensação, uma vez por mês, tínhamos sessão de cinema no colégio. Era um dia de festa.

A sessão ocorria no sábado pela manhã, sempre depois dos trabalhos de faxina e antes do almoço. Logo cedo, pela manhã, os mais afoitos não se continham e iam perguntar para as freiras se elas já sabiam qual seria o filme do dia. Lá pelo meio da manhã todos esperávamos atentos ao toque da campainha do portão que anunciava a chegada do senhor Sampaio. Ele fazia parte da Irmandade e era o responsável por trazer o equipamento e passar os filmes para nós.

Os preparativos faziam parte da festa. As freiras orientavam a colocação de cobertores nas janelas altas da sala para escurecer o ambiente. Enquanto isso o senhor Sampaio ia preparando o equipamento, conferindo os rolos da fita em suas tradicionais caixas redondas de metal. Depois começava a montar o primeiro rolo sobre o braço de suporte e a passar e repassar a fita de celulóide sobre aquele labirinto mecânico por trás da lente de projeção, até que ela saia na outra extremidade e era presa no carretel vazio.

Eu achava que era um privilégio poder ver tudo aquilo tão de perto. Nossos olhos ficavam como que hipnotizados com aquele ritual, esperando com a respiração contida o momento do teste, em que ele colocava a máquina para funcionar e os fotogramas começavam a deslizar matraqueando por entre as engrenagens. Às vezes algo não saía bem e tinha que recomeçar tudo de novo. Talvez o senhor Sampaio fizesse de propósito, para criar mais suspense ou espicaçar nossa curiosidade ou, ainda, para alertar nossa responsabilidade futura sobre o domínio das máquinas. Nem achávamos ruim quando já no meio do filme a fita se quebrava e a sessão era interrompida. Acendiasse a luz, esfregávamos os olhos e voltávamos a cabeça para apreciá-lo emendar as pontas e a recolocação da fita nas engrenagens até que elas voltassem a correr as luzes se apagassem novamente.

O senhor Sampaio fazia tudo com enorme paciência e com visível prazer enquanto fumava e conversava distraidamente com as freiras que cuidavam para que não chegássemos muito perto.

Nós admirávamos aquele personagem. Tanto por ser o responsável por aquela caixa mágica que nos trazia momentos de fantasia, mas também por ser uma figura de homem afável, quase paterna, e que nos tratava a todos com atenção. Sua imagem nunca me saiu da memória. Era um homem pequeno e magro, sempre com seu cigarro na boca e com o chapéu a esconder-lhe os raros fios de cabelo que ainda lhe ficavam nas têmporas. Apesar do calor carioca, vestia-se sempre de modo formal, com paletó, camisa branca, gravata e calças com suspensório, figurino típico dos anos 50. Sistematicamente, sempre que chegava pendurava com muito cuidado o paletó e o chapéu num cabide da parede.

A sessão de cinema era tão importante que ficar proibido de assistir a uma delas era, depois de ficar sem visita, o maior de todos os castigos. Nós éramos razoavelmente bem comportados, mas as freiras eram rígidas e não deixavam passar qualquer oportunidade para fazer lembrar-nos as regras. Vez por outra alguém ficava “premiado”. Quando isso acontecia o senhor Sampaio procurava interceder em favor do punido. Fazia-o sempre, mas acho que nunca conseguiu mudar a decisão das freiras. O castigo consistia em  ficar sentado num banquinho baixo colocado atrás da “platéia” e de costas para a tela. As freiras, por sua vez, ficavam no fundo da sala, assistindo ao filme e vigiando os punidos.

Foi nessas sessões de cinema que conheci pela primeira vez as aventuras de Roy Rogers, do Zorro e do Durango Kid, alguns dos caubóis da época cujas aventuras, depois, viravam assunto de nossas conversas e brincadeiras no recreio e povoavam a nossa imaginação na hora de dormir. Quem sabe, um dia, conseguíssemos uma máscara negra e um cavalo branco para tentar... fugir do colégio.

Eu gostava das comédias com Charles Chaplin. Passavam também muitos filmes com a dupla Gordo e o Magro e com os Três Patetas. Eles eram engraçados, mas eu não entendia a razão de tanta pancadaria como motivo para fazer rir.

Vez por outra aparecia algum filme de cunho religioso. Um deles foi “Andrócles e o Leão”, de 1952. A história se passava no tempo em que os cristãos eram atirados às feras no Coliseu para diversão dos romanos. Achei aquilo uma coisa terrível e a cena dos leões no Coliseu acabou se incorporando ao meu acervo de pesadelos de criança.

Havia fitas dramáticas, também. Um dos poucos que me ficaram na memória era uma estória em que um dos personagens, um homem casado e pai de quatro ou cinco filhos, sofre um assalto e é agredido pelos bandidos. Em conseqüência dos golpes que recebe passa a sofrer de amnésia e não consegue reencontrar o caminho de casa. Os filhos crescem desconhecendo o destino do pai e mantendo por muito tempo a expectativa de que ele um dia retornasse. O título se perdeu mas ficou o registro do enredo. A ausência da figura paterna era um drama que certamente nos tocava a quase todos. [Recentemente, Henrique, um dos companheiros daquela época, que tem ótima memória, me contou que se tratava de "Seu único pecado", com o ator Akim Tamiroff].

2 comentários:

  1. Deu dó esse castigo imposto aos meninos, de ficarem de costas à projeção. Realmente as freiras eram rígidas e disciplinadoras. Como ex aluno tive todos os tipos de experiências em "premiações" possíveis. Arteiro era uma das minhas mais inatas qualidades, volta e meia lá estava eu recebendo minhas condecorações merecidas em 99,99% das vezes. Mas a visão de uma criança ser castigada dessa forma me tocou nesta leitura.

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  2. É verdade, Antonio, mas eram outros tempos. Felizmente não fui da época em que, mesmo em colégios pagos, havia a palmatória e outros métodos de "correção". Daqui a alguns dias eu conto o motivo pelo qual recebi o prêmio de ficar sem cinema.

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