terça-feira, 25 de maio de 2010

O telefone não fala!



Logo que a capela do colégio foi inaugurada alguns arranjos tiveram de ser feitos. É que todas as freiras queriam participar das orações do final do dia naquele novo espaço. O órgão já estava instalado no centro do coro e a Irmã Alegria e a Irmã Vicência se revezavam para tocá-lo. O problema é que a secretaria ficava a descoberto. Se o telefone ou a campainha da rua tocasse ninguém ficaria sabendo. A solução foi escalar um aluno para ficar de plantão enquanto todos iam para a capela. Um belo dia coube-me exercer essa função.

Acho que até aquela data nunca tinha feito a experiência de falar ao telefone. Claro que já conhecia o aparelho, mas só de vista. Tinha um na casa da vovó Olívia, no Grajaú, que era muito usado pela família. Eu até já sabia o seu número de cor, de tanto ouvi-la repetir no seu sotaque minhoto amenizado pelos quase quarenta anos de Brasil: « Aqui é o tresóito-quatruóito-nobecinco ». Todo mundo ia lá, ouvia, falava, parecia muito fácil. O do colégio era igual. Portanto eu não tinha o menor motivo para reclamar da convocação. Nem achei que era necessário dar a conhecer minha falta de experiência prática. Ia perder as orações sim, mas poderiam ser adiadas para outra ocasião. Afinal, seria divertido ficar ali, com um tempo extra para fazer a imaginação voar.

Pelo que eu já sabia era raro alguém ligar para o colégio. As famílias dos internos não tinham permissão para fazê-lo a não ser em circunstâncias muito graves. Mais raro ainda era soar a campainha do portão. Assim, no meu primeiro dia de plantão tudo ia muito bem, e só se ouvia o ruído abafado das orações na capela. Até que o inesperado aconteceu: o telefone tocou. « Que sorte! » pensei, « Justo no meu primeiro dia de plantão! » E lá fui às carreiras, tropeçando em tudo que havia pela frente, ao encontro do aparelho. Respirei fundo e caprichei para dizer « Alô!». Não podia sair fraquinho, nem gritado, nem tremido. Tinha que sair natural, da mesma forma que todo mundo fazia... O telefone continuou em silêncio... « Alô » repeti, com ansiedade. O mesmo silêncio... Foi aí que descobri não ter certeza de qual dos lados do aparelho era para escutar e qual para falar. Fácil, era só inverter a posição. Não funcionou, o telefone continuava mudo.

Por mais que eu alternasse as posições não conseguia escutar nada mesmo. Entrei em pânico, sem saber o que fazer... Meu dia de estréia no mundo da tecnologia das comunicações estava se transformando num total fiasco.

Foi então que, em desespero, resolvi dizer para aquela coisa que esperasse e, em seguida sai correndo chamar a freira. Ela ia me perguntar quem era e eu tinha que dizer a verdade: que não sabia. Mas como não tinha outro jeito, antecipando o vexame, fui assim mesmo e disse-lhe que o aparelho devia estar com problemas por que não falava. Acho que ela não acreditou pois voltou comigo “elogiando” o tempo todo a minha incompetência. Ela pegou o telefone como sempre fazia e falou e ouviu o que se dizia do outro lado. Fiquei vexado, claro, pela bronca e principalmente por não ter atinado com o que efetivamente tinha deixado de funcionar.

Depois de algum tempo tive uma nova oportunidade. Nesse meio tempo eu já tinha revisado todas as possibilidades de solução caso o problema se repetisse. Mas era improvável. Por que só comigo? Mas aconteceu! Novo apuro, novo vexame... Mistério.

Os companheiros ficaram sabendo da história e engrossaram a chacota por causa das minhas orelhas de abano, grandes mas incapazes de ouvir ao telefone.

O fato é que quando a coisa se repetiu pela segunda vez as freiras quiseram tirar a coisa a limpo. Experimente assim, faça desse outro jeito... Até que... Heureca! Nada de errado com o aparelho, era mesmo o meu ouvido que não funcionava!

Como eu era destro era natural que pegasse o aparelho com a mão direita e o levasse ao ouvido direito, que não funcionava. O do lado esquerdo era normal, ouvia perfeitamente, e por isso, no dia-a-dia, nem eu nem ninguém se dava conta do problema. Afinal, quem iria imaginar que aquele menino de orelhas grandes tinha problemas de audição.

O caso ficou por isso mesmo. Eu não tinha nenhuma infecção ou problema visível que exigisse cuidados médicos de urgência. Talvez fosse problema congênito. Só anos mais tarde é que tive condições de consultar um especialista. Pensei que o problema tivesse conserto. Através de um exame de audiometria se constatou que o nervo auditivo estava completamente inoperante. “Você teve sorte por só ter sido afetado num dos ouvidos” disse-me o médico. “Não posso garantir, mas é muito provável que tenha sido uma conseqüência do sarampo” completou.

De fato eu havia contraído a doença logo nos primeiros dias da minha chegada no Brasil. Naquela época ainda não existia a vacina, só descoberta em 1963, e por isso o sarampo costumava deixar seqüelas.

Com o tempo me acostumei com a situação. A adaptação exigiu aprender um pouco de leitura labial e a posicionar-me sempre para que meus interlocutores ficassem do meu lado esquerdo, onde eu pudesse ouvi-los direito. Só não consegui aprender a dançar. Era impossível manter a conversa com o meu par falando no meu ouvido direito. E se mantinha a conversa não acertava o passo!

terça-feira, 18 de maio de 2010

Em tempo de eleições: o cearense Juarez e o mineiro JK



No ano de 54 o presidente Getulio Vargas havia cometido suicídio. Nunca me esqueci daquela data porque era também o do aniversário de minha mãe: 24 de agosto.

Mesmo sem ter idade para entender a importância daquele episódio e apesar do isolamento do internato, dava para sentir que o ambiente não estava nada tranqüilo. Víamos as expressões preocupadas dos adultos à nossa volta e ouvíamos os comentários que as freiras faziam entre si. Muito barulho havia ocorrido nos meses que antecederam o fim do governo Vargas, ao compasso das acusações que Lacerda fazia na imprensa. Estávamos na capital do país. A sede do governo e o centro daquela agitação política não ficavam a mais de uma dezena de quilômetros de onde eu estava.

A política voltou a esquentar no ano seguinte por conta do processo eleitoral que escolheria o sucessor de Vargas. Um dos concorrentes era o Juarez Távora, um militar cearense que havia sido um dos tenentes de 1922, do episódio da revolta do Forte de Copacabana. E foi por causa desse ilustre cearense que nós passamos a ouvir falar um pouco mais de política ali dentro. É que Távora tinha na Irmã Vicência, sua conterrânea, uma defensora fiel e propagandista dedicada. Elogiava principalmente a retidão de princípios e qualidade moral que ela achava serem predicados próprios dos militares.

A opção por um militar tinha as suas razões naquela altura. A Grande Guerra era ainda um episódio recente e dera aos homens de farda ampla presença política e prestígio em todo o mundo, pelo menos do lado dos vencedores. No Brasil, pouco antes da candidatura de Juarez, Gaspar Dutra, outro general, havia sido eleito presidente pelo voto popular. Anos mais tarde, na eleição para escolher o sucessor de JK, o general Lott também decidiu enfrentar o desafio das urnas, perdendo para Jânio.

Juarez, ainda segundo a Irmã Vicência, era o homem certo, por ser cearense, para por fim ao sofrimento do povo nordestino com o flagelo das secas.

Apesar da sua torcida e das suas muitas orações Juarez acabou perdendo, embora por pequena margem, para o mineiro Juscelino, conterrâneo da Irmã Luiza, que evitou comemorar para não alimentar polêmicas.

Pouco antes da posse de JK nova confusão, envolvendo Café Filho, vice de Getúlio, Carlos Luz, que era o presidente do Senado e seu vice, Nereu Ramos, além de Lacerda e os militares pelo meio da história. Apesar de todo o falatório sobre o assunto eu não fazia a menor idéia do que se estava passando. Só via que os adultos estavam preocupados com a instabilidade “provocada pelos políticos” e que almejavam novamente um “ato patriótico” dos militares para recolocar o país nos eixos.

A idéia que então eu fazia da política é de que se tratava apenas um jogo entre políticos, supervisionado pelos militares.

Às vezes eu ouvia algum adulto falar contra o comunismo sem atinar com o significado daquilo. Sabia que era coisa dos russos e que todo o comunista era ateu. Aprendera, portanto, que todos os católicos deveriam ser contra o comunismo. Seria mais uma questão religiosa. Mas no internato não se falava muito do assunto. A certa altura o assunto começou a chover literalmente no nosso pátio de recreio. É que alguns teco-tecos começaram a fazer freqüentes sobrevôos sobre o bairro lançando panfletos com desenhos e mensagens anticomunistas. As freiras não impediam que pegássemos aqueles papéis, nem faziam comentários sobre as suas mensagens. Logo se transformavam em matéria-prima para aviõezinhos. Lembro, entretanto, que os desenhos procuravam passar a imagem de que os comunistas eram pessoas brutas e que queriam impor alguma coisa à força de ameaças e prisões. A figura predominante dos desenhos era uma caricatura de Nikita Krushev, que havia sucedido a Stalin após a morte deste em 1953. Não consegui descobrir o que teria motivado aquela propaganda. Talvez, olhando para os registros da história da época, tenha se relacionado com algum movimento político interno contrário à legalização do partido comunista que JK havia negociado em campanha para conquistar mais apoios à sua candidatura.



terça-feira, 11 de maio de 2010

A capela



No ano de 55 a capela do Educandário ficou pronta. Dedicada a Nossa Senhora de Fátima foi inaugurada festivamente pelo monsenhor Henrique de Magalhães que era então pároco da Igreja da Candelária. A capela era muito simples e despojada, com as paredes pintadas numa cor clara, em tom levemente azulado. No átrio, alinhavam-se duas dúzias de bancos de madeira, divididos por um corredor central. A parte superior era formada por um balcão em forma de « U » e se ligava ao piso inferior por uma escada em espiral num dos cantos ao fundo da capela. Nesse balcão foi instalado um pequeno órgão onde a Irmã Vicência demonstrava sua habilidade no manejo do duplo teclado, registros e pedais para acompanhar os cânticos que ensaiávamos todas as tardes, depois do “crieléison”, - como chamávamos a ladainha do “Kyrie”. Naquela altura ainda se rezava quase tudo em latim. O pequeno altar ficava encimado por uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, ladeada por dois anjos que, com expressão fixada no horizonte distante e como se não lhes pesasse nada, sustentavam duas estruturas de luminárias de globos.

Apesar de sua arquitetura simples a nova capela passou a ser motivo de orgulho para as freiras. É que a partir dali teriam um espaço mais adequado para fazer as orações e para a educação religiosa dos seus pupilos. Nós, as crianças, já ficamos menos contentes, pois deixaríamos de fazer o passeio matinal dos domingos para assistir a missa na Igreja de São Cristóvão e dar uma espiadela no mundo exterior. Era um passeio curto, meia dúzia de quarteirões, mas era sempre uma diversão. Íamos na velha jardineira conduzida pelo seu Luciano. Como os outros membros da irmandade da Candelária, aparecia sempre bem vestido, de terno e gravata, pequeno bigode e cabelos pretos penteados com “gumex”. Quando dirigia a jardineira tirava o paletó e ostentava uma camisa sempre muito branca. Era sempre pontual e atencioso.

O contato com outras pessoas, entretanto, não acabou totalmente: aos domingos as freiras permitiam que os vizinhos da rua assistissem à nossa missa. Ficavam ao fundo e não havia possibilidade de contato.


Pouco antes da inauguração da capela do colégio monsenhor Magalhães tratou de formar alguns coroinhas. Fomos cinco os escolhidos: o Augusto, o Luís, o Rogério, o Marcos e eu. O vai-e-vem do missal, os toques da campainha, a água e o vinho das galhetas, todo o ritual tinha que estar bem decorado para não quebrar a seqüência da cerimônia. E assim também as falas, tudo em latim, que a gente de tanto repetir ia pouco a pouco descobrindo as semelhanças com o português.

Com o início das missas na capela as freiras organizaram uma espécie de revezamento entre nós, dois a cada domingo. Nos dias de festas religiosas, como na Páscoa, atuávamos todos. Às vezes éramos convocados para participar de alguma missa festiva na Igreja da Candelária.

Eu era muito tímido e aquela exposição no altar não combinava com o meu jeito de ser. Mas as freiras tanto nos elogiavam e o monsenhor também que acabei me acostumando.

Apesar de a capela ter limitado nossos passeios ainda assim tivemos algumas oportunidades de sair para participar de eventos religiosos. Um deles foi o Congresso Eucarístico Internacional, que ocorreu em meados de 1955 sob a responsabilidade de D. Hélder Câmara. As cerimônias davam-se no aterro da Glória, no local onde mais tarde foi construído o Monumento dos Pracinhas. Na época era apenas uma área enorme em terra batida onde tinham sido montados um altar mor, numa parte alta, e centenas de bancos de madeira para atender à multidão.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Primeira comunhão

O internato não era um seminário, mas era parecido. Mantido por uma tradicional instituição católica e administrado por freiras era natural que a religião tivesse presença marcante na nossa vida diária. Rezávamos antes e depois de começar cada atividade. A primeira oração era feita ainda ao lado da cama, logo que nos despertavam. A última, antes de nos deitarmos. Isso sem contar as orações individuais que cada um fazia, pelos seus familiares, ou na esperança de se livrar de um castigo, ou por qualquer outro motivo que achássemos que só Deus, os Santos ou o nosso Anjo da Guarda nos pudessem valer.

Logo no meu primeiro ano de Educandário prepararam-me para fazer a primeira comunhão. A mim e a todos os outros na mesma faixa de idade. Ao longo do segundo semestre as freiras se revezavam no ensino do catecismo. A cerimônia aconteceu no final do ano, no dia 8 de dezembro, dia dedicado à Imaculada Conceição de Nossa Senhora. Tratava-se de um dia especial porque naquele ano completava-se o centenário da proclamação, feita pelo papa Pio IX, do dogma da Imaculada Concepção. A missa foi realizada na velha igrejinha de São Cristóvão, na Praça Padre Seve, porque a capela do colégio ainda não estava pronta. Todos estávamos a caráter, vestidos de branco, vela com laço de cetim em uma das mãos e o livro de orações na outra. Não tínhamos idéia de quanto nossas famílias tinham gastado para adquirir aqueles paramentos todos, mas isso não importava naquele momento. Desfilamos cheios de importância e orgulho pelo passo que estávamos dando. A missa, por ser um evento especial, era mais comprida do que o normal, mas pareceu-nos ainda mais longa porque estávamos todos em jejum. Ao final ganhamos um café da manhã como nunca havíamos tido antes, com chocolate, bolos, biscoitos e a presença da família: uma verdadeira festa. A festa maior, entretanto, viria logo depois: não tínhamos que voltar de jardineira para o colégio; estávamos livres para ir para casa, em férias.