segunda-feira, 13 de setembro de 2010

O Colégio Pedro II


O colégio Pedro II do Campo de São Cristóvão era também um internato. Pode parecer que naquela época só havia colégios assim no Rio de Janeiro. Na verdade os internatos tinham sido uma necessidade na época em que não havia escolas no interior do país para que os jovens progredissem além dos estudos básicos. O ensino mais qualificado só estava disponível nos colégios das cidades de maior porte e nas capitais. Assim, boa parte deles recebia alunos como internos.

Os internatos marcaram época e ficaram imortalizados na literatura brasileira, como em “O Ateneu”, de Raul Pompéia, editado em 1888, e “Doidinho” de José Lins do Rego, publicado em 1933. Depois desses ainda saíram os textos de Pedro Nava, com “Balão Cativo”, de 1973 e “Chão de Ferro”, publicado em 1976, este narrando sua passagem pelo Pedro II, nos anos 20. Todos os textos são autobiográficos.

Na segunda metade do século XX essa não era mais a realidade e o Pedro II era um dos poucos remanescentes daquela época. Além do mais, era um colégio especial que carregava uma longa e importante história. Havia sido criado no dia 2 de dezembro de 1837 em homenagem ao imperador Pedro II que naquela data completava doze anos. Foi instalado no prédio da atual Avenida Floriano Peixoto, no centro da cidade, onde deveria funcionar tanto em regime de externato como de internato. Vinte anos mais tarde, em 1857, o internato passou a constituir uma unidade distinta, instalado na Rua São Francisco Xavier, onde funcionou por três décadas. Em 1888 foi transferido para o campo de São Cristóvão, no mesmo local onde, curiosamente, a Candelária havia pretendido instalar o seu primitivo projeto do Asilo para a Infância Desvalida. A coincidência ficava apenas no interesse pelo prédio. O colégio Pedro II era uma instituição que se destinava à educação da elite juvenil brasileira, preparando alunos para o ensino superior, muito diferente, portanto, do asilo imaginado pela Candelária, voltado para o ensino básico e da preparação para as atividades técnicas fabris.



O prédio do colégio Pedro II, no início do século XX

No final dos anos 50, embora já não fizesse mais sentido a manutenção de internatos daquele tipo, como acima foi dito, o Pedro II preservava o seu antigo formato. Não era apenas por tradição, mas porque era ainda considerado como colégio padrão para o ensino secundário em todo país. Possuía um quadro de professores do mais alto nível e os livros adotados pelo colégio eram referência para a maioria das outras escolas. Por tudo isso, suas vagas continuavam a ser intensamente disputadas.

Quando me inscreveram para o concurso de admissão ao Pedro II eu não sabia nada disso. O que eu sabia apenas é que era um outro internato e que era gratuito, condições que estavam em acordo com as finanças da família e que o colocavam no topo das nossas preferências. Eu também não entendia porque que apesar de se tratar de um internato havia uma multidão de candidatos, a grande maioria composta por jovens provenientes de famílias da classe média que residiam na própria cidade do Rio de Janeiro e que não teriam problemas em freqüentar os externatos.

Só aos poucos fui me dando conta do que representava o ingresso naquele colégio. Principalmente pela expressão de respeito que os adultos pareciam dar ao fato de eu ter passado no exame de admissão. Aos poucos, também, fui entendendo as diferenças com o internato de onde saíra. No anterior éramos todos pobres e nada nos diferenciava. Ali, apesar da gratuidade, poucos eram realmente carentes. Aliás, foi preciso que minha mãe andasse atrás de atestados de pobreza para que a burocracia estatal me concedesse o direito de receber gratuitamente livros, cadernos, uniformes e todo o enxoval de cama e banho que o colégio exigia.

A consciência das diferenças entre os dois internatos só veio mesmo com o início das aulas. O primeiro dia foi algo inesquecível. Centenas de garotos, dos onze ao vinte anos se apinhavam no grande pátio coberto contíguo ao velho prédio. Os veteranos saudando o retorno às aulas; os novatos tentando fazer os primeiros contatos entre si. A algazarra era imensa e parecia incontrolável. Até que surgiram os inspetores com suas batas brancas e, logo, com autoridade, foram organizando as turmas. Em poucos minutos todos estavam em filas, aguardando o comando para subir para as salas de aulas. Minha turma era mais numerosa do que toda a população do anterior educandário. Era o momento agora do primeiro contato com os professores, da tentativa de conhecer cada um dos companheiros pelo nome, acompanhando a chamada oral. E de ouvir pela primeira vez o próprio nome naquela lista. Era verdade: eu estava ali.

Depois veio o primeiro recreio e o início das primeiras amizades. E também a surpresa, esta pelo lado negativo, de ser obrigado a passar pelo tão tradicional quanto estúpido trote. Principalmente por que minhas orelhas de abano me faziam ser um dos mais requisitados pelos veteranos. Enfim, era uma forma de batismo e de contato entre novos e velhos alunos que os inspetores não reprimiam Mas ficavam vigilantes e sua presença evitava abusos.

Depois das primeiras semanas já me sentia plenamente um membro daquela grande comunidade. Para quem saíra de um internato religioso com trinta e poucas crianças, o Pedro II era um mundo. Mais de quinhentos alunos, pelo menos uma centena de professores e bedéis e outro tanto de funcionários diversos. E muito espaço: o colégio ocupava uma área aproximada de quarenta mil metros quadrados. Parecia impossível que tudo aquilo pudesse funcionar ordenadamente. Na verdade o colégio tinha regras a serem respeitadas e a os bedéis eram bastante rígidos. Eles se revezavam com os professores nas salas de aula e marcavam presença também nas áreas de recreio, refeitório e em todos os outros espaços onde os alunos poderiam estar durante o dia. Nos dormitórios, eram mantidos vigias por toda a noite.

O Campo de São Cristóvão, por volta de 1960:
o Centro de Exposições ao centro, ainda com as placas de cobertura do projeto original,
e o colégio Pedro II ao alto, onde se pode identificar o antigo prédio
 e, mais atrás, o novo e amplo edifício em construção.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Último dia

Quinze de dezembro, domingo. 1957. Dia da festa de encerramento do ano letivo. Como ocorria todos os anos, a cerimônia constava de premiações aos que se haviam destacado nos estudos e no comportamento. Minha mãe e a tia Olímpia estavam lá. Minha participação no vestibular para o Pedro II foi reconhecida e elogiada, mesmo sem se saber ainda o resultado. Recebi uma nova medalhinha dourada de “honra ao mérito” e um prêmio em dinheiro creditado numa conta de poupança que eu poderia retirar quando fizesse dezoito anos. 

Os lauréis eram importantes, mas o momento mais aguardado, depois de quatro anos de internato, era o momento de cruzar o portão de ferro com a certeza de que não teria que retornar no ano seguinte.

Encerrada a festa, começaram as despedidas. À sensação da liberdade juntava-se a sensação das perdas. Deixavam também o colégio naquele ano o Rogério, o Marcos e o Walter, companheiros de quatro longos anos. Também saíam os que terminaram a 4ª série naquele ano. Talvez jamais voltasse a encontrá-los. Iriam todos enfrentar novos desafios em mundos diferentes. A única certeza era de que nenhum de nós esperava encontrar uma vida fácil.

À saída, as professoras e freiras desejaram-nos boa sorte. Teriam motivos para pensar que nunca mais nos veriam. Tinham cumprido sua missão.

O portão estava aberto. Cruzá-lo já não tinha mais nenhum significado especial. Era apenas uma passagem.

Minha mãe e eu alcançamos a rua e seguimos a pé para o Campo de São Cristóvão onde também acontecia o encerramento do ano letivo no Departamento Feminino.

Era um dia quente, prenunciando o calor intenso de mais um verão carioca. A rua já estava calma e silenciosa como sempre, indiferente aos transeuntes. Íamos falando dos novos problemas e de como as coisas se arranjariam dali por diante.