sexta-feira, 30 de julho de 2010

Uma professora muito especial

Quando eu ainda vivia em Portugal havia freqüentado um jardim de infância que funcionava na casa de uma senhora vizinha. Tinha de usar um guarda-pó sobre a roupa, como uniforme, e carregava comigo uma pequena lousa para rabiscar as letras ou desenha. Era um quadro-negro portátil. Mas foi por pouco tempo e não cheguei a aprender grande coisa. No Brasil, ao completar sete anos, ainda estávamos em fase de adaptação e a prioridade da família era encontrar uma casa para morarmos e buscar alguma forma de sustento. A escola teria que esperar.

As lousas antigas, da minha primeira escola em Portugal.
A foto "L'information scolaire, Paris, 1958"
é de autoria do francês Robert Doisneau (1912-1994),
obtida no site www.robert-doisneau.com, em 24/07/2010 

A curiosidade é que não esperou. Era meu vizinho o primo Affonso, quatro anos mais velho que eu e já bem adiantado na escola. Como ele era filho único, meu irmão e eu éramos os seus companheiros de brincadeiras. Na rua e em casa. E quando ele tinha que fazer os deveres de escola eu pedia para ficar ao seu lado na mesa desenhando ou rabiscando qualquer coisa. Dava-me algumas folhas de caderno e, brincando, foi assim que aprendi as primeiras lições. Começou por me passar palavras para copiar e a me ensinar aritmética, que era o que eu mais gostava. Com o passar do tempo já resolvia com rapidez os problemas mais simples e logo lhe pedia outros. Assim, aproveitando os lápis, papel e a paciência do Afonso, quando entrei no Educandário já sabia ler, escrever e fazer as quatro operações. Aprendia brincando. O primo Affonso acabou por se tornar o meu primeiro professor.

No Gonçalves de Araújo tive apenas três professoras. Dona Glorinha (Maria da Glória, já não me lembro o sobrenome), da 2ª série, era a paciência e a bondade em pessoa. Na 3ª série foi a vez da Irmã Alegria, muito severa. Os anos já lhe pesavam e não tinha tanta paciência;  mais cobrava do que ensinava. Foi a dona Maria Luiza  (Feijó Figueira), na 4ª série, a primeira professora de verdade, a professora das lições mais difíceis.

Tinha cerca de cinqüenta anos. Muito magra e sempre vestida com sobriedade aparentava ser uma mulher frágil. Mas a sua energia parecia inesgotável quando assumia o seu papel de professora na sala de aula. Apesar de sermos apenas cinco alunos, pobres e de futuro duvidoso, ela se empenhava como se fosse a missão da sua vida. Em troca, exigia nossa dedicação. Era rígida com a matéria sem ser severa com os alunos. Mas não ficava por aí. A sua forma de nos envolver com as lições tinham o dom de nos ajudar a esquecer que estávamos no internato, distantes de casa e da família. Eram exigências novas, perguntas novas, desafios mais complexos e estimulantes do que os da convivência diária sob a rígida e monótona rotina do colégio. Sempre nos trazia novos livros, a pretexto de premiar nosso desempenho nas provas mensais. Livros que nos forneciam combustível para fazer voar nossos pensamentos para fora daqueles muros.

Sua dedicação acabou por ter um papel marcante naqueles primórdios da minha vida de estudante. Muito atenta ao desenvolvimento do grupo, foi ela que percebeu minhas afinidades com a matemática. No início do segundo semestre resolveu convencer as freiras a me inscrever num concurso que havia na época, ao estilo das atuais “olimpíadas de matemática”. Tanto insistiu que as freiras acharam que eu talvez tivesse alguma chance e foram levar o assunto para o Provedor. Veio a autorização e assim fui inscrito como representante do internato.

A primeira etapa era regional e envolvia os alunos das escolas de São Cristóvão e bairros vizinhos. Alguém me levou para a escola onde seria feita a prova, num local desconhecido e no meio de pessoas e crianças que nunca tinha visto. A única coisa familiar eram o lápis, o papel e a matéria da prova.

Algumas semanas depois a Irmã Vicência foi me chamar no pátio de recreio dizendo que a Irmã Alegria queria falar comigo. É que tinha chegado a notícia do resultado da tal prova e estava classificado para participar da próxima etapa. Tirara o 1º lugar. Fiquei contente e as freiras também, mas ninguém ficou mais feliz do que a minha professora. As freiras me elogiaram e a Irmã Alegria me deu como prêmio um medalhão de Nossa Senhora das Graças, numa moldura de plástico leitoso, desses que ficam visíveis no escuro.


Na segunda etapa participavam os melhores colocados em todas as regionais do então Distrito Federal. Já não me senti tão deslocado quando tive de ir para um outro local, com outras pessoas, para a última prova. Só que agora tinha medo do resultado. Não fui tão mal: fiquei com o 3º lugar.

Naquela época minha mãe vivia em São Paulo e por isso ela só ficou sabendo do episódio por uma carta que lhe escrevi, todo prosa, embora com termos contidos porque tinha que ser submetida à censura das freiras. Fui encontrar essa carta muitos anos depois, entre as lembranças que minha mãe havia conseguido guardar daqueles anos atribulados.

Algum tempo depois ocorreu o evento de premiação, no teatro João Caetano. Estavam lá a Olímpia e a tia Alice. Ganhei uma coleção de livros do Monteiro Lobato.

Aquela experiência foi uma revelação de algo que eu era capaz de fazer bem e ser por isso reconhecido. Uma revelação que eu devia à minha professora. Dali por diante o meu mundo ganhava uma nova dimensão e o tempo parecia passar mais depressa.

A 1ª página da cartinha enviada para minha mãe comunicando os resultados do concurso

Um comentário:

  1. Adorei essa passage! Sentí a nostalgia da înfância, e a ternura de ser criança. Bela carta, e parabéns pelos resultados!

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