terça-feira, 27 de abril de 2010

Passeios e festas

Os passeios externos eram raros. Depois que se construiu a capela do colégio já quase não tínhamos oportunidade de sair. Eventualmente íamos assistir uma missa especial na Candelária. Fomos uma vez a um hospital para doentes de lepra que pertencia à Irmandade. Passeio mesmo, foi quando nos levaram para passar um dia inteiro em uma chácara, nos arredores do Rio de Janeiro. Provavelmente ficava em Nova Iguaçu, então um dos maiores centros de produção de laranjas do Brasil. A chácara deveria pertencer a algum dos membros da irmandade da Candelária. Havia espaços enormes para correr e brincar e um mundo de pés de laranjeira, todos carregados de frutas maduras. Voltamos embriagados de tanto chupar laranja e cansados de tanto correr.

Com o passar do tempo o número de alunos foi aumentando e a velha "jardineira" do seu Luciano já não comportava todo mundo.

As festas religiosas da Páscoa, São João e de Cosme e Damião eram sempre comemoradas no internato. Na Páscoa, depois da missa, ganhávamos os tradicionais ovos de chocolate que tínhamos de procurar pelo jardim logo depois da missa. O São João era mais divertido, pois tínhamos até queima de fogos, com direito a lançar, da varanda, busca-pés, estrelinhas, espirais e até soltar balão “japonês”. Era época de comer melado com farinha, como sobremesa. Mas o melhor das guloseimas ficava para a festa de Cosme e Damião quando algumas pessoas, ou da Irmandade ou mesmo das vizinhanças do internato, levavam algumas caixas de doces em pagamento de promessas feitas aos santos gêmeos, protetores das crianças. Tínhamos sobremesa diferente por vários dias.

A melhor festa de todas era, naturalmente, a festa de fim de ano. Porque logo que terminava íamos para casa, em férias. Era sempre uma festa solene, realizada num domingo, com a presença dos familiares, professoras e dos membros da Irmandade. Faziam entrega de medalhas de honra ao mérito aos melhores alunos. Davam também alguns prêmios em dinheiro que eram depositados numa conta da Caixa Econômica , mas só disponíveis quando atingíssemos a maioridade.

Essas festas ocorriam também no Departamento Feminino, onde estava minha irmã. Como eram muitas alunas, cerca de uma centena, a festa era maior. Havia inclusive uma exposição-feira onde eram colocados à venda os trabalhos artesanais que as alunas faziam durante o ano. Geralmente eram trabalhos de costura, bordados, etc. Isso porque as meninas recebiam aulas de costura e outras artes manuais, já que o colégio não oferecia o curso secundário. Minha mãe, a tia Olímpia e a tia Alice sempre procuravam comprar alguma coisa feita por minha irmã, como lembrança. Ela fazia sempre coisas muito bonitas e delicadas. Acompanhei várias vezes minha mãe e a Olímpia naquelas exposições. Enquanto desfilávamos entre as mesas onde estavam os trabalhos estavam expostos, minha mãe lamentava-se de não poder comprar todos os que a filha fizera. A tia Olímpia era mais incisiva e dizia que era uma vergonha colocarem à venda, para os próprios parentes, os trabalhos das meninas. Minha mãe contemporizava dizendo que os preços significavam que o trabalho da “sua” pequena tinha valor e que, no futuro, poderia ganhar algum dinheiro com aquelas artes e habilidades.

A festa das meninas tinha direito até mesmo a reportagem na “Voz de Portugal” um dos jornais da comunidade portuguesa. Uma vez chegaram mesmo a publicar uma foto no momento em que minha irmã recebia sua premiação. Como não conseguimos guardar o jornal, alguns anos mais tarde fui à redação e pedi a cópia daquela foto. Acharam graça e com toda a boa vontade mostraram-me um armário cheio de caixas de papelão repletas de fotos. Talvez tenham pensado que eu iria desistir e ir embora. Depois de algumas horas tive a sorte de encontrar o que procurava. Sai de lá todo orgulhoso e contente pelo achado. Foi minha primeira experiência em recuperar um pedacinho da história da família.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Na hora do recreio




Eram os recreios mais silenciosos de que eu participei. Havia, sim, em algum momento, barulho e gritos, mas não dava a impressão de que ali estivessem quase trinta crianças. Com exceção do futebol e de alguma outra brincadeira mais agitada, a maior parte dos nossos jogos era bastante silenciosa. Formávamos pequenos grupos e cada um deles se envolvia em uma atividade diferente. Além disso as freiras estavam sempre por perto, vigilantes, para impedir excessos.

O grupo maior era o do futebol, nosso passatempo preferido. Até mesmo a Irmã Luiza vez por outra participava. O problema é que as bolas eram de borracha e quicavam muito. Eram também pouco resistentes aos chutes daqueles pés inábeis e não agüentavam duas partidas seguidas. Às vezes tínhamos de improvisar com bolas de papel, mas já ficava sem graça porque não quicavam. Sem bola, o jeito era apelar para o “pique”, “pega-bandeira”, “lenço-atrás” e outros jogos da época.

Os grupos dos mais tranqüilos se dividiam entre as bolas de gude, o jogo das “pedrinhas” ou “cinco-marias”, do ferrinho e outros. Eram brinquedos simples, que nós mesmos podíamos fazer. Muito comuns também eram as pipas “ratinho”, com papel de embrulho ou de jornal, mais raramente uma folha de caderno, armada com varetas de piaçava, tudo colado com restos de arroz cozido. Alguns tinham álbuns de figurinhas. As mais difíceis entravam no mercado de trocas e as mais comuns iam para o jogo do “bafo-bafo”.

A certa altura ganhamos um conjunto de balanço e gangorras. Foi instalado no pátio externo. No começo geravam muita disputa porque todo mundo queria brincar neles.

Pátio de recreio
A foto pertence ao acervo da Candelária; é provavelmente dos anos 70,
já com o piso concretado e com o balanço recolocado ao fundo.
A hora do recreio era a hora também de colocar as conversas em dia, de comentar as provas, uma notícia de casa, o último filme do seu Sampaio, ou simplesmente contar casos e verbalizar nossos sonhos e fantasias de crianças. Havia naquele grupo um menino que tinha especial talento para contar histórias. Era o « Bolacha », um garoto gorducho e de grandes bochechas, um ano mais novo do que eu. Quando estava inspirado era capaz de manter a atenção de muitos de nós ouvindo os seus casos mirabolantes.

Nos finais de semana passávamos muitas horas também na sala de recreação. Era a ocasião para exercitarmos a leitura ou a habilidade com os joguinhos de mesa, os tradicionais dominós, pega-varetas, ludos e damas. Havia, também, uns brinquedos de armar, feitos em plástico, precursores dos atuais “lego”. Um deles era o “lig-lig”, bastante maleável, que dava para fazer muitas coisas, inclusive bolas. O outro era feito de pinos redondos, coloridos, com encaixes. Havia ainda o tradicional “Pequeno Engenheiro”, para montar casas torres e castelos, mas o mais interessante era um jogo de armar, com pequenas peças de metal furadinhas, ligadas por meio de parafusos e porcas. Chamava-se Maq-Bras, ou algo parecido, e era uma espécie de “lig-lig” de luxo. Eu olhava de longe, maravilhado com as coisas que podiam ser feitas com todas aquelas peças: torres, guindastes, caminhões, quase tudo... Não sei que fim levou. Quando fiquei maior o brinquedo não existia mais.

As freiras participavam também. Elas gostavam muito de jogar damas. Tinham um tabuleiro grande, com peças de madeira, e jogavam entre si. É um jogo bem simples e logo aprendi as regras. Fui aos poucos ganhando gosto e traquejo pela coisa e depois de algum tempo não tinha menino que me vencesse. Ia ver o jogo das freiras. Um dia me convidaram para jogar com elas. Ganhei da irmã Luiza e já todo empolgado fui enfrentar a irmã Vicência. Perdi desastradamente. Mas pouco a pouco aprendi os truques delas e a disputa passou a ser mais parelha.


sexta-feira, 16 de abril de 2010

Medos




Enquanto somos crianças o medo é uma coisa mágica que muitas vezes se manifesta de forma involuntária e inesperada em meio aos nossos sonhos. A solução é igualmente mágica: correr para a cama dos pais, onde os monstros e fantasmas estão proibidos de entrar.

No internato esses medos tinham que ser resolvidos por conta de cada um. Uns rezavam, outros simplesmente ficavam de olhos abertos até que o sono os fechasse outra vez. Outros faziam xixi na cama. Algumas vezes, instintivamente, alguém ia parar na cama de outro menino.

As noites chuvosas do verão carioca eram difíceis de enfrentar. Trovoadas intermináveis, ventanias que lançavam as chuvas sobre as vidraças das janelas do dormitório e relâmpagos que pareciam incendiar tudo em volta. Nessas ocasiões Irmã Luiza, depois de apagar as luzes, gastava um pouco mais de tempo em seu passeio por entre as fileiras de camas do dormitório para acalmar os mais assustados e dar tempo a que todos pegassem no sono. Quase sempre, nessas ocasiões, ele custava a chegar e a gente tinha que torcer para a freira ficar mais um pouquinho, dar mais uma ou duas voltas. Às vezes ela pensava que todos já estavam dormindo e ia embora para o seu quarto no andar de baixo. Jamais alguém teve a coragem de pedir para ela ficar mais um pouquinho. Seria o fim da fama do valente!

Houve um desses verões em que surgiram entre nós, as crianças, umas conversas sobre o capeta. Ninguém sabia como nem porque o assunto tinha se instalado entre nós. Durante o dia o tema até que era divertido e cada um procurava inventar uma história diferente e mais aterrorizante. Uma delas era a de que “ele” costumava aparecer na esteira dos relâmpagos e que se transformava em uma bola de fogo para levar as suas vítimas para as profundezas do inferno. Foi o bastante para muitos de nós passarmos horas de insônia. De manhã o resultado aparecia: algumas camas desfeitas e colchões tendo que ser carregados para secar na varanda. E nem sempre eram os mais pequenos.



terça-feira, 6 de abril de 2010

Leituras

Nossa biblioteca consistia de uma pequena pilha de revistas na sala de recreação. Nos dias de visitas alguém sempre trazia um novo exemplar. Raramente era novo mesmo, mas o que importava é que fosse diferente dos que já tínhamos. Vez por a Candelária enviava um pacote com novas revistas para recompor o estoque. Geralmente eram da coleção “Série Sagrada” e “Edições Maravilhosas”. Ambas eram em quadrinhos, muito bem desenhados. A primeira reproduzia as histórias dos santos e episódios religiosos. A segunda aproveitava como tema alguns dos mais famosos contos de escritores brasileiros. Eu gostava daquelas histórias e me prendia principalmente nos detalhes dos desenhos, até porque eram realmente muito bem feitos. Também tinhamos « Príncipe Valente » e a tradicional “Tico-Tico” onde estrelavam os engraçados personagens Reco-Reco, Bolão e Azeitona, criados por Luis Sá. Eram também muito disputadas as do “Pato Donald”, de Walt Disney.


Quase todas essas revistas eram produzidas ali mesmo em São Cristóvão, bem pertinho, pela Editora Brasil América. O « Pato Donald » saía pela Editora Abril, instalada no início dos anos 50.

Ganhei meus primeiros livros no internato das mãos da professora Maria Luíza, quando estava na quarta série. Ela os dava como estímulo ao estudo. Valiam ouro pelo que então significavam : davam asas ao pensamento. Eram livros sobre a história e sobre a geografia do Brasil.

Um dos autores preferidos da professora era o hoje desconhecido Francisco Marins. Ganhei “Território de Bravos”, a história da conquista do Acre pelos brasileiros comandados por Plácido de Castro que avançaram mata adentro na Amazônia para extração do látex da seringueira; aventura que resultou na incorporação do Acre ao Brasil. Do mesmo autor ganhei também “Expedição aos Martírios” que narra a história de um grupo de aventureiros que parte pelo interior do país em busca das minas perdidas.

Marins era então um jovem escritor, com pouco mais de trinta anos, e viria a produzir muitos outros textos, muitos dos quais se tornariam clássicos da literatura juvenil brasileira. “Os Segredos do Taquara-Póca”, “O Coleira Preta”, “Nas Terras do Rei Café”, dentre outros, fariam parte, décadas mais tarde, da biblioteca dos meus filhos.

Outro autor que li através dos livros da professora Maria Luiza foi Viriato Corrêa: “Meu Torrão”, “A Bandeira das Esmeraldas” e “História do Brasil para Crianças”, eram as melhores obras sobre história do Brasil para a garotada.


Além destes eu me encantava com as histórias de um outro autor, do qual também hoje pouco se fala. Era Ariosto Espinheira, autor de uma série chamada “Viagens Através do Brasil”. Ganhei o volume que falava do Rio São Francisco, das regiões que atravessava e das populações que viviam nas suas margens. Quantas vezes dormi sonhando com imaginárias viagens ao longo daquele tão decantado rio. Quando finalmente conheci o “velho Chico”, uns trinta anos depois, ele já não era mais o mesmo das narrativas que eu havia lido. Tinha sido vítima do progresso e do descuido.

Esses autores e seus livros foram, juntamente com Monteiro Lobato, os responsáveis por boa parte dos conceitos de cidadania que aprendíamos na escola. De leitura agradável e atraente, aumentavam nossa curiosidade pela nossa história, cultura, geografia e economia. Menos conhecidos, mas não menos importantes, os ilustradores desses livros agregavam um valor enorme ao texto escrito. Meus olhos ficavam atraídos por muito tempo numa mesma gravura tentando encontrar detalhes e outras histórias que o autor esquecera de contar...