quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Leituras

A curiosidade é uma das maravilhas da espécie humana. Depois da saudade da família o que mais eu sentia no internato era a limitação do exercício da curiosidade pela carência de informações e de novidades que a estimulassem. Aquilo acabava acentuando a sensação de exclusão do mundo.

Volta e meia alguém levava um jornal para o colégio. As freiras liam, faziam comentários entre si, mas era difícil entender o conteúdo daquelas conversas. As crianças não tinham acesso aos jornais. Melhor dizendo, só tínhamos acesso aos seus fragmentos. Era quando precisávamos de papel para ir ao banheiro. Para não onerar o orçamento as freiras recortavam os jornais velhos em pedacinhos e nos davam meia dúzia deles cada vez que tínhamos que ir fazer as nossas necessidades. Com alguma sorte conseguíamos juntar dois pedaços de uma mesma página e encontrar alguma novidade interessante. Eram sempre lidos e relidos com muita atenção. Quando não dava para entender, tentava-se advinhar. Líamos desde os pequenos anúncios, necrológios, até as corridas de cavalos. Nada escapava. Com sorte ganhava-se uma tirinha do Pinduca, ou do Reizinho.

As outras formas de obter informações acabavam nos sujeitando a riscos e punições. Um dia acabei passando por uma experiência dessas.

O episódio aconteceu em 1957, na época em que a Irmã Alegria estava doente. Quando ela foi para o hospital algumas funções tiveram de ser redistribuídas. No horário das refeições, por exemplo, era costume a Irmã Alegria ficar no andar de cima, de plantão, para atender algum eventual chamado de telefone ou do portão. As outras freiras desciam para o refeitório junto com a criançada. Assim, na ausência da Irmã Alegria foi preciso escalar algum dos meninos maiores para que assumissem aquele papel. Como eu fazia parte desse grupo e gozava de bom conceito com as freiras quase sempre era escolhido. Claro que à custa da fome encompridada. Depois, em compensação, servia-me à vontade.

Num desses plantões encontrei sobre a máquina de costura que ficava na sala onde tinha que guardar o meu posto, um exemplar de “O Cruzeiro”. Naquela época era a revista de maior circulação no país, famosa por ter introduzido e explorado ao máximo as técnicas do foto-jornalismo: quanto maior a foto, maior a polêmica ou o escândalo, ou vice-versa. O exemplar havia sido deixado por um sobrinho da Irmã Vicência, o Elias, que fazia faculdade e que freqüentemente ia visitar a tia.

Curioso para saber o que acontecia no Rio de Janeiro e no resto do mundo, mas também para esquecer a barriga vazia, pus-me a folhear a revista a começar pela sempre engraçada página de “O Amigo da Onça”. E assim o tempo passou sem que eu desse por ele. Quando um colega me veio dizer que já podia descer para almoçar, fechei a revista e recoloquei-a onde a tinha encontrado. Já o almoço e o recreio me haviam feito esquecer da revista e do que nela tinha visto quando fui chamado à presença da freira. Ela me aguardava na sala, de pé, ao lado da máquina de costura. Estava brava: dera-se conta de que o objeto da minha curiosidade não estava exatamente no lugar em que fora deixada e tinha deduzido que eu havia lido a revista.

Até ai não achei que o assunto fosse grave. Uma bronca, um puxão de orelha, talvez. Não podia imaginar que ler uma revista tão popular e que servia de leitura para as freiras e seu sobrinho fosse algum pecado. Foi preciso que as freiras explicassem, não sem algum constrangimento, que aquela revista em particular continha muitas fotos do carnaval e fotos de muitas pessoas com roupas inadequadas para entrar num colégio de freiras, muito menos para serem vistas pelos olhos de um garoto que deveria se conservar inocente. Tentei argumentar, mas de nada adiantou. Tomei um baita sermão e fiquei sem direito de assistir à próxima sessão de cinema.

Nessa época eu já tinha onze anos, uma idade em que já se sabe um pouco de muita coisa e que se quer saber mais ainda. Idade suficiente para se ter algumas noções de certo e errado e de justiça. Achei que se me consideravam bom aluno e bem comportado a ponto de justificar que as freiras me dessem encargos maiores, essas condições deveriam também contar a meu favor, para minhas faltas ou deslizes. Talvez tivessem reconsiderado se eu soubesse argumentar melhor meus pontos de vista. Mas não soube e daí minha frustração. Chorei, ressentido, achando que o fato de não me terem dado o crédito que eu entendia merecer era castigo pior do que ter ficado sem cinema.

De qualquer forma a curiosidade não morreu ali. Mas ficou a lição: depois disso nunca mais deixei de prestar muita atenção no lugar e na posição em que as freiras esqueciam os novos exemplares de « O Cruzeiro ».

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