terça-feira, 30 de março de 2010

O cinema do senhor Sampaio



As transmissões de televisão no Rio de Janeiro já estavam no ar desde 1951 trazidas pelo Chateaubriand, o rei da mídia brasileira na época. Entretanto, os aparelhos de recepção ainda eram objetos de luxo e pouco acessíveis à grande maioria das famílias. O rádio era, então, o principal meio de comunicação, presente em quase todos os lares, ocupando um lugar de destaque na sala, em suas bem elaboradas caixas de madeira ou, os mais modernos, de baquelite, uma versão antiga dos plásticos. Lá dentro, um presépio de válvulas de formatos variados que puxavam pela imaginação cientifica das crianças. Os radinhos de pilha ainda estavam para chegar.

Minha mãe havia trazido um rádio de Portugal, marca GE, que pegava muito bem as transmissões internacionais pelas ondas curtas. Um dia sofreu uma pane qualquer e um vizinho prestimoso levou-o para ser consertado por um amigo. Nunca mais voltou do conserto. Mais tarde conseguimos outro aparelho, de segunda mão, não tão bonito nem tão bom de ondas curtas, mas que tinha lá dentro os mesmos personagens das novelas e do “balança-mas-não-cai”.

O rádio também estava presente no internato. Ficava num cantinho da “sala de comando”. As freiras ligavam o aparelho todos os dias para que ouvíssemos, no final da tarde, as "Histórias do Tio Janjão", um programa para crianças. Ou para ouvirmos as prédicas religiosas do Monsenhor Henrique Magalhães, o capelão da Candelária. As novelas radiofônicas embora fizessem muito sucesso não chegavam aos ouvidos dos internos. Ficava só para o período de férias, em casa. Em compensação, uma vez por mês, tínhamos sessão de cinema no colégio. Era um dia de festa.

A sessão ocorria no sábado pela manhã, sempre depois dos trabalhos de faxina e antes do almoço. Logo cedo, pela manhã, os mais afoitos não se continham e iam perguntar para as freiras se elas já sabiam qual seria o filme do dia. Lá pelo meio da manhã todos esperávamos atentos ao toque da campainha do portão que anunciava a chegada do senhor Sampaio. Ele fazia parte da Irmandade e era o responsável por trazer o equipamento e passar os filmes para nós.

Os preparativos faziam parte da festa. As freiras orientavam a colocação de cobertores nas janelas altas da sala para escurecer o ambiente. Enquanto isso o senhor Sampaio ia preparando o equipamento, conferindo os rolos da fita em suas tradicionais caixas redondas de metal. Depois começava a montar o primeiro rolo sobre o braço de suporte e a passar e repassar a fita de celulóide sobre aquele labirinto mecânico por trás da lente de projeção, até que ela saia na outra extremidade e era presa no carretel vazio.

Eu achava que era um privilégio poder ver tudo aquilo tão de perto. Nossos olhos ficavam como que hipnotizados com aquele ritual, esperando com a respiração contida o momento do teste, em que ele colocava a máquina para funcionar e os fotogramas começavam a deslizar matraqueando por entre as engrenagens. Às vezes algo não saía bem e tinha que recomeçar tudo de novo. Talvez o senhor Sampaio fizesse de propósito, para criar mais suspense ou espicaçar nossa curiosidade ou, ainda, para alertar nossa responsabilidade futura sobre o domínio das máquinas. Nem achávamos ruim quando já no meio do filme a fita se quebrava e a sessão era interrompida. Acendiasse a luz, esfregávamos os olhos e voltávamos a cabeça para apreciá-lo emendar as pontas e a recolocação da fita nas engrenagens até que elas voltassem a correr as luzes se apagassem novamente.

O senhor Sampaio fazia tudo com enorme paciência e com visível prazer enquanto fumava e conversava distraidamente com as freiras que cuidavam para que não chegássemos muito perto.

Nós admirávamos aquele personagem. Tanto por ser o responsável por aquela caixa mágica que nos trazia momentos de fantasia, mas também por ser uma figura de homem afável, quase paterna, e que nos tratava a todos com atenção. Sua imagem nunca me saiu da memória. Era um homem pequeno e magro, sempre com seu cigarro na boca e com o chapéu a esconder-lhe os raros fios de cabelo que ainda lhe ficavam nas têmporas. Apesar do calor carioca, vestia-se sempre de modo formal, com paletó, camisa branca, gravata e calças com suspensório, figurino típico dos anos 50. Sistematicamente, sempre que chegava pendurava com muito cuidado o paletó e o chapéu num cabide da parede.

A sessão de cinema era tão importante que ficar proibido de assistir a uma delas era, depois de ficar sem visita, o maior de todos os castigos. Nós éramos razoavelmente bem comportados, mas as freiras eram rígidas e não deixavam passar qualquer oportunidade para fazer lembrar-nos as regras. Vez por outra alguém ficava “premiado”. Quando isso acontecia o senhor Sampaio procurava interceder em favor do punido. Fazia-o sempre, mas acho que nunca conseguiu mudar a decisão das freiras. O castigo consistia em  ficar sentado num banquinho baixo colocado atrás da “platéia” e de costas para a tela. As freiras, por sua vez, ficavam no fundo da sala, assistindo ao filme e vigiando os punidos.

Foi nessas sessões de cinema que conheci pela primeira vez as aventuras de Roy Rogers, do Zorro e do Durango Kid, alguns dos caubóis da época cujas aventuras, depois, viravam assunto de nossas conversas e brincadeiras no recreio e povoavam a nossa imaginação na hora de dormir. Quem sabe, um dia, conseguíssemos uma máscara negra e um cavalo branco para tentar... fugir do colégio.

Eu gostava das comédias com Charles Chaplin. Passavam também muitos filmes com a dupla Gordo e o Magro e com os Três Patetas. Eles eram engraçados, mas eu não entendia a razão de tanta pancadaria como motivo para fazer rir.

Vez por outra aparecia algum filme de cunho religioso. Um deles foi “Andrócles e o Leão”, de 1952. A história se passava no tempo em que os cristãos eram atirados às feras no Coliseu para diversão dos romanos. Achei aquilo uma coisa terrível e a cena dos leões no Coliseu acabou se incorporando ao meu acervo de pesadelos de criança.

Havia fitas dramáticas, também. Um dos poucos que me ficaram na memória era uma estória em que um dos personagens, um homem casado e pai de quatro ou cinco filhos, sofre um assalto e é agredido pelos bandidos. Em conseqüência dos golpes que recebe passa a sofrer de amnésia e não consegue reencontrar o caminho de casa. Os filhos crescem desconhecendo o destino do pai e mantendo por muito tempo a expectativa de que ele um dia retornasse. O título se perdeu mas ficou o registro do enredo. A ausência da figura paterna era um drama que certamente nos tocava a quase todos. [Recentemente, Henrique, um dos companheiros daquela época, que tem ótima memória, me contou que se tratava de "Seu único pecado", com o ator Akim Tamiroff].

terça-feira, 23 de março de 2010

Dia de visitas



As visitas ocorriam no primeiro domingo de cada mês, sempre das 2 às 4 horas da tarde. Depois do almoço íamos para o pátio até pouco antes das duas horas quando subíamos para a sala de recreação. Naqueles dias, porém, as brincadeiras não tinham qualquer graça ou interesse. Serviam apenas para disfarçar a nossa ansiedade por ver alguém da família e ter noticias de casa.

O toque da campainha da rua punha em funcionamento nossos cronômetros mentais. Ficávamos contando os segundos com os olhos fixos no trinco da porta da sala. Quando ele se abria a contagem parava para ver qual dos meninos a freira vinha chamar.

Entre uma chamada e outra se passavam intermináveis minutos. Quantas dúvidas, quanta insegurança, quanta ansiedade era possível passar pelas nossas cabeças naqueles curtos momentos... Será que não puderam vir? Se chegarem atrasados não vou ter tempo de contar quase nada e de ficar sabendo das novidades de fora! Ou será que já chegaram e a freira não veio chamar? E o que estarão dizendo as freiras de mim para eles?

Vez por outra, por castigo, algum menino ficava sem o direito de receber visita. Era raro, mas por isso mesmo não menos temido. O coitado chorava e a mãe também. Por fim as freiras quase sempre cediam e acabavam permitindo o encontro, ainda que depois de repetir as broncas e de fazer grandes reprimendas ao faltoso.

Pior era quando algum menino não recebia visita de ninguém. Às vezes avisavam por telefone, informando de algum problema de última hora. Outras sequer davam notícia. Todos tinham pena daqueles “abandonados”.

Só permitiam a visita de, no máximo, duas pessoas para cada aluno. Se por acaso vinha alguém a mais tinha que esperar no portão até que algum dos visitantes saísse. Nos aniversários, porém, fazia-se exceção e deixavam que as famílias trouxessem um bolo e cantassem baixinho o “parabéns a você”.

Irmã Alegria e Irmã Vicência ficavam o tempo todo na sala e participavam das conversas com as mães das crianças. Assim não davam espaço para as reclamações. Também ficavam atentas aos modos e comportamentos dos visitantes. Vez por outra chegavam mesmo a criticar as mães que se apresentassem usando pintura ou uma roupa mais colorida, ou por algum outro motivo. Talvez julgassem que ninguém poderia estar ali sem demonstrar outro sentimento que não o de tristeza.

A verdade é que não havia muito que contar. Nossa vida era extremamente rotineira e a disciplina não dava espaço para grandes novidades. Além disso, nossas mães tampouco podiam contar muita coisa das suas vidas que nos pudessem interessar. Depois de referir alguma coisa sobre o que faziam meus irmãos e sobre o restante da família os silêncios aumentavam. Apesar disso os minutos andavam depressa. Quando se anunciava o fim do horário de visita lá vinha o nó na garganta que os mais novos logo desatavam em lágrimas e os mais velho disfarçavam dizendo alguma coisa sem nexo.

Voltávamos para a sala de recreação e no caminho os embrulhos que cada um recebera eram entregues a uma das freiras, que anotava neles o nome de cada um. Sabonetes eram para uso pessoal e iam para o nosso escaninho do banheiro; as pastas de dentes iam para o fundo de uso comum. O que fosse de comer, geralmente frutas, nos seria devolvido comedidamente ao longo dos dias seguintes. Sempre que era possível eu guardava o meu papel de embrulho porque conservava o “cheirinho” de casa.


terça-feira, 16 de março de 2010

Rotina

A saída de Portugal onde eu havia nascido, o relacionamento com os até então desconhecidos parentes do Rio de Janeiro, a adaptação ao novo clima tropical, o aprendizado do sotaque e vocabulário do carioca, todas aquelas mudanças pareciam desafios fáceis comparados com a mudança do Grajaú para São Cristóvão. É que até aquele momento minha mãe tinha estado sempre perto e presente. Agora, ela, a tia Olímpia, os irmãos, tios, primos, deixavam de ser os personagens de referência. Dali por diante eu estaria longe deles, convivendo com pessoas desconhecidas e num ambiente completamente estranho. Não era um ambiente hostil, mas eu me sentia sufocado pelas saudades, pelos muros que cercavam a escola, pela sensação de isolamento e por ver todas essas mesmas percepções espelhadas em cada um dos rostos dos outros meninos.

“O que não tem remédio, remediado está”, costumava dizer a tia Olímpia, sempre pronta a avaliar tudo com o tradicional determinismo da cultura popular portuguesa. E assim foi.

Com o passar das primeiras semanas os espaços do colégio iam aos poucos se revelando e se encaixando nos referenciais daquele novo espaço-mundo. Associar nomes aos rostos, a seqüência das atividades de rotina, as regras para comer, brincar, estudar, enfim, para o que era permitido fazer. Tudo funcionava segundo uma ordem estabelecida. Mais uma vez me vinham à memória os ditos da tia Olímpia apreendidos nas tradições de um povo de emigrantes : “na terra aonde fores ter, faz como vires fazer”. E assim as recordações de casa e os apertos da saudade iam ficando para os momentos de maior isolamento, na hora das rezas ou sob os lençóis da cama e o manto das noites em que o sono custava a chegar.

Os dias dos internos começavam cedo, às sete horas. Era quando uma das freiras entrava no dormitório batendo palmas para fazer todo mundo sair da cama. Logo ela abria as janelas altas e o sol inundava as pequenas caras ainda estremunhadas da criançada. Em pouco tempo os grupos iam-se organizando em fila para ir ao banheiro onde outra freira já estava a postos para supervisionar e organizar os que iriam escovar os dentes e aguardar a vez de tomar seu banho frio. Enquanto isso os outros arrumavam as camas.

Dali a meia hora todos estavam prontos, em fila indiana, os menores à frente e os maiores fechando o pelotão. Então desciam para a primeira refeição do dia: o invariável café com leite e pão com manteiga. Do refeitório marchavam para as salas de aula no primeiro andar. As classes começavam às oito horas e iam até ao meio-dia. Hora de se organizar outra vez a fila, desta vez na varanda, para descer para ao refeitório e encher as barrigas vazias. Uma mesa de cada vez, as crianças iam para a fila pegar da pilha um prato de ferro esmaltado, branco, e aguardarem serem servidas. As porções eram boas, mas alguém sempre estava disposto a repetir, se sobrasse. Depois do almoço era a hora do bendito recreio, geralmente no pátio externo. Uma hora para por os assuntos em dia e dedicar-se às brincadeiras. Para os meninos maiores, entretanto, o recreio começava mais tarde. Eram escalados, em sistema de revezamento, dois por semana, para lavar os pratos após as refeições. Nos dois últimos anos eu era sempre um dos escalados para esses serviços. Mas sempre havia uma expectativa de compensação já que a despensa ficava bem ao lado da copa e lá estava o depósito com atraentes torrões de açúcar a se oferecerem às mãos ligeiras e bocas gulosas. Que a Irmã Luiza não visse! O resto da tarde era dedicado a fazer as lições de casa, com uma interrupção para fazer um lanche rápido.

Lá pelas cinco da tarde era o momento das orações rezadas no coro da capela. Primeiro o terço, depois as ladainhas, encerrando-se com o ensaio dos cânticos para a missa dominical. Às seis já todos estavam de volta ao refeitório para o jantar, uma refeição mais leve. Depois mais meia hora de recreio no pátio. Para finalizar o dia mais duas horas de estudo ou leitura. Às nove horas todos já estavam na cama para dormir.

Todos deitados, luzes apagadas, a freira circulava entre as fileiras de camas até se dar conta de que todos dormiam.

Os sábados eram dedicados à faxina, atividade que ficava sob a responsabilidade dos meninos maiores comandados pela Irmã Luiza e Irmã Vicência. As turmas eram divididas e cada grupo tratava de cumprir sua missão: limpar banheiros, lavar as varandas, encerar as salas, etc. A função de lavar os banheiros era considerada como a mais desagradável porque tínhamos que esvaziar, com um pano, toda a água do sifão das privadas e depois lavar com sabão e sapólio para deixar tudo brilhando e desinfetado. O mais pesado era lavar com esfregão as compridas varandas do colégio, todas em ladrilhos brancos, hexagonais. As paredes adjacentes eram revestidas de azulejos também brancos que deviam ficar brilhantes e limpos. Não havia hipótese de deixar alguma sujeira que não fosse logo vista pelos olhos aguçados das freiras. Mas havia sempre o lado divertido da coisa. Ficávamos esperando que a freira se afastasse para “esquiar” no piso escorregadio de água e sabão. Tudo em meio a risos abafados. Às vezes podia-se ganhar um tombo, que além da dor poderia revelar a molecagem. Por isso a maioria “esquiava” com a mão acompanhando o muro da varanda para o caso de perder o equilíbrio. Encerar e dar lustre no piso das salas era outra das duras tarefas do sábado. Naquele tempo só havia cera em pasta e o lustro era conseguido na base de escovão. Como tudo o mais, também virava brincadeira na ausência das freiras, com os escovões dançando freneticamente de um lado para o outro e escapando – de propósito – em direção a uma vítima.

Os trabalhos das manhãs de sábado terminavam sempre na hora do almoço. Era a hora da recompensa para a turma da limpeza: um prato reforçado e sobremesa em dobro.

Um sábado por mês era dedicado ao corte de cabelo da garotada. Duas freiras dividiam entre si a tarefa. Geralmente a Irmã Vicência ficava com a velha máquina manual e a Irmã Alegria com uma mais moderna, elétrica. Ficávamos esperando a vez e torcendo para não cair com a irmã Vicência porque a máquina manual mordia e puxava o cabelo da gente. Mas o que ninguém gostava mesmo era o estilo de corte: a detestável franjinha, aquele tufo de cabelos em semicírculo, na frente, sobre a testa. O resto era passado na máquina zero. Na copa do mundo de futebol de 2002 o jogador Ronaldo tentou relançar essa velha moda e muita gente achou graça. Eu tinha um motivo a mais para não gostar desse estilo de corte: eram as minhas orelhas de abano que pareciam dobrar de tamanho quando me cortavam o cabelo daquele jeito. Os que ficavam por último gozavam dos que levavam as mordidas da máquina e das caras de desconsolo que uns faziam ao levantar da cadeira.

Os domingos começavam pela missa na capela. Era sempre bem cedinho, antes do café, para que todos pudessem comungar. É que no sábado à tarde recebíamos a visita do Monsenhor Magalhães para nos confessar e fazer alguma preleção. O resto do dia era dedicado inteiramente aos jogos e brincadeiras, no pátio ou numa das salas do primeiro andar.

Aquelas rotinas tentavam nos passar um mundo de ordem, organizado e estável. De previsibilidade, mas também de segurança. Procuravam definir um limite para novas experiências e situações.

O pior era que a rotina parecia esticar o tempo. Os poucos dias especiais demoravam uma eternidade: o sábado do cinema, os dias das festas religiosas como a Páscoa, São João e Cosme e Damião. O dia de sairmos de férias, então, parecia demorar séculos. Até esse dia chegar contávamos as horas e os minutos que faltavam para o domingo da visita mensal. Esse será o tema da próxima semana. 



terça-feira, 9 de março de 2010

As crianças

Em 1954 foram apenas quatro os pequenos calouros admitidos no internato: o Hélio, o Chiquinho, o Benedito e eu. Ficamos todos na primeira série. Ganhamos um exemplar do livro “Meu Tesouro”, um par de cadernos “Escoteiro”, lápis e borracha, nosso equipamento de trabalho.


Depois de algumas semanas após o início das aulas Hélio e eu, por sermos um pouco mais velhos e porque já sabíamos ler fomos agrupados com os outros meninos que começavam a segunda série: o Marcos, o Valter, o Augusto e o Rogério. Estávamos todos na faixa dos oito anos. Mas tanto os da primeira quanto os da segunda tínhamos todos a mesma professora, a D. Glorinha, e dividíamos a mesma sala.

A turma dos “cavalões”, como lhes chamavam as freiras, era formada pelos “veteranos”, os mais velhos e mais antigos de casa, que cursavam a 3ª e a 4ª séries: José, Nelson, Luis, Miguel, Carlos, Herondino, Adão, Maurício, Eronides, Dernaldo, Edson, Gilberto e Ricardo.

Ao todo éramos vinte e uma crianças no ano letivo de 54. Um pingo de gente naquele casarão.

No ano seguinte foram admitidos mais doze meninos: Alfredo, Ari, Ferreira, Henrique, José Dutra, José Paulo, Mário, Napoleão, Saturnino, Sebastião, Sérgio e Xavier. Como sete dos mais velhos tinham saído no final do ano anterior passamos a somar vinte e seis. Este é o número de internos que aparece na foto adiante, feita em 1955.

Esta é a única foto feita durante os anos que lá estive (1954-1957) e foi tirada num domingo de maio de 1955, após a missa de inauguração da capela, dedicada a N.S. de Fátima. Sou o 2º a partir da esquerda, de pé, vestido de coroinha. 
(clique na imagem para aumentar) 

Em 56 foram admitidos mais nove: Paulo, Jurandir, Geraldo, Dilzo, Raimundo, Luiz Guilherme, Jorge, Jorge Paulo e Otávio. Deduzindo os três haviam saído, o grupo subiu para trinta e dois.

Em 57 chegaram doze novos garotos: Walter, Hilário, Sebastião José, Manoel, Vitório, José Bento, Carlos Clementino, Roberto, João, Francelino, Domício e Cláudio Luiz. Tendo saído apenas quatro no final do ano anterior, o número total de internos subiu para trinta e oito. Foi a maior lotação da época em que lá estive.

Esses eram os nomes de batismo. Tínhamos números e, claro, apelidos. Havia o Bolacha, o Formigão, o Chulé, o Babão, e muitos outros. O que me parecia mais curioso de todos era o “Relógio de Bonde” atribuído a um garoto que tinha o rosto grande e redondo. Eu era o “Dumbo”.

Minha maior convivência foi com o pequeno grupo que fez comigo a segunda série, no ano de 54. Do sexteto inicial, o Helio deixou o colégio ao final de 56 para fazer o curso de admissão fora e o Augusto, por alguma razão que não me recordo, acabou se separando dessa turma no meio do caminho. Assim, apenas quatro completaram comigo a quinta série em 57: Marcos, Rogério, Valter e eu.

Os períodos mais difíceis eram sempre as primeiras semanas do ano, com a chegada dos novos alunos e o retorno das férias dos antigos. Todos reagiam à separação da família e ao regime de internato. Alguns de forma mais visível outros menos, de acordo com a personalidade de cada um. Eram sempre semanas muito difíceis e que exigiam enorme atenção das freiras e professoras.

Para os novatos era preciso passar por certa aculturação para se enquadrar no ritmo dos demais, principalmente no que se referia aos hábitos de comportamento e de higiene. As freiras eram muito atentas a esses aspectos. Procuravam fazer com que os maiores ajudassem os mais novos, estimulando o companheirismo e impedindo que houvesse qualquer prevalecimento de grupos. Nos primeiros dias eram as freiras que organizavam as brincadeiras, de modo a envolver os mais tímidos e arredios e controlar os ímpetos e imposições dos maiores. Depois de alguns dias sempre se estabelecia um bom relacionamento entre todos. Ao final do primeiro mês o processo de assimilação já estava completo e os recém chegados, com raras exceções, já tinham assumido os padrões do resto do grupo.

O “denuncismo” era uma prática muito comum entre as crianças. Em parte porque as freiras pressionavam para que alguém entregasse o “arteiro” quando o próprio não o fazia. Embora seja um comportamento relativamente comum entre crianças numa família, ali refletia também um comportamento de defesa em relação ao grupo. Isso evitava brigas ou discussões mais compridas ou abusos dos maiores sobre os menores: alguém logo abria a boca para contar qualquer alteração no grupo.

Havia, por exemplo, uma diversidade de padrões bastante curiosa com relação aos hábitos de higiene. Quando se queria ir ao banheiro, era preciso pedir licença à freira ou à professora. E as expressões que cada um utilizava revelavam seus hábitos de casa. “Posso ir ao matinho?” dizia um, “Posso ir na casinha”, pedia outro, “Quero ir lá fora!” gemia um terceiro. A freira achava graça e perguntava se o assunto era: “grande ou pequeno?” Se era “grande” levava papel.

O banho diário ao levantar era outro hábito que logo todos tinham de adquirir, assim como escovar os dentes, de manhã e à noite, arrumar a própria cama, cuidar de seu próprio uniforme.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Freiras e professoras


A Irmã Alegria era a madre superiora, a que me recebera no portão de ferro. Estava na faixa dos setenta anos, magrinha, mas bem empertigada. Tinha voz firme e ia sempre direto ao assunto, sem rodeios. Além da supervisão geral, lecionava para os meninos da terceira série. Sua adjunta era a Irmã Vicência, uma cearense de quarenta e poucos anos, mas aparentava bem menos. Era muito ativa e sempre atenta a tudo que se passava entre os meninos. A irmã Luiza, mineira, era a responsável pela cozinha e alimentação da garotada. Era a mais nova e também a mais robusta das três. Comandava também as duas funcionárias da lavanderia e da cozinha.

Irmã Alegria, c.1955

Mais tarde fiquei sabendo que esses nomes não eram os de batismo, mas eram escolhidos por elas quando adotavam a vida religiosa. Todas pertenciam à congregação das Vicentinas e faziam parte da Associação da Medalha Milagrosa, devotas da francesa Santa Catarina Laboré. Usavam um hábito pesado, de lã ou tecido semelhante, na cor azul marinho, e um enorme chapéu com abas em ponta, de tecido branco, a “corneta”, como o que aparece na foto acima. Esse chapéu, anos mais tarde, acabou ficando muito conhecido pela personagem do filme e depois seriado de TV “A Noviça Voadora”. Para fazê-lo era preciso engomar um pano retangular sobre uma superfície plana e, depois de seco, dobrado para adquirir o seu formato tradicional. Sob a corneta usavam uma espécie de lenço também em tecido branco, que cobria integralmente os cabelos, as orelhas e o pescoço e se prolongava sobre o peito, na forma de duas palas também engomadas. Era uma vestimenta bizarra, pesada, que nos chocava pela total inadequação ao clima sempre quente do Rio de Janeiro.

A impressão causada por aquela vestimenta e as perguntas sobre o seu significado pronto deram lugar à preocupação em interpretar as expressões e os sentimentos que os rostos – as únicas partes visíveis daqueles personagens – poderiam representar. Era o mais importante.

Nas primeiras semanas eu só falava com elas quando me perguntavam alguma coisa. Procurava prestar toda a atenção ao que diziam ou faziam, para descobrir a hierarquia entre elas, compreender as funções e responsabilidades de cada uma em relação a nós.

As freiras eram pessoas preparadas que conheciam música e muitas habilidades manuais. Desenhavam e pintavam com facilidade. Tinham uma técnica curiosa para fazer “santinhos” com papel vegetal, furando com a ponta de um alfinete para criar um efeito de alto-relevo. Dominavam o uso do francês, trocando entre si algumas palavras nesse idioma. Não sei se por simples hábito ou porque não queriam que entendêssemos. Com certa freqüência ouvíamos a irmã Vicência chamar a irmã Alegria de “Marcela”, ou algo parecido. Ficávamos intrigados com o que parecia ser um tratamento que não se enquadrava nos formalismos da época. Talvez fosse o seu nome de batismo, pensava. Só muitos anos mais tarde, quando recordava o fato com um dos companheiros daqueles tempos, é que me dei conta de que ela talvez dissesse “ma soeur”, “minha irmã” em francês.

(Irmã Vicência, 1983)

Eram freiras por vocação. A Irmã Luiza contou-me, numa das visitas que lhe fiz no Asilo onde vivia já nonagenária, que havia escolhido a vida religiosa quando tinha apenas quinze anos. Disse que seu pai ao saber da sua vontade, pediu-lhe que adiasse o ingresso no convento até quando ele morresse. Talvez esperasse que, com o passar dos anos, a filha mudasse de idéia. Afinal, Belo Horizonte era uma capital com muitas opções. Mas nada a fez mudar de vocação. Nove anos mais tarde o pai faleceu e ela, sentindo-se livre da promessa, pode realizar o sonho de tornar-se Irmã de Caridade.

(Irmã Luiza, 2004)

As freiras faziam questão de dizer e repetir as regras a que tínhamos de obedecer e as aplicavam com bastante consistência. Não se deixavam enredar pelas pequenas manhas da garotada. Cuidavam de todos nós com atenção, mas sem a pretensão de substituir o carinho maternal. Procuravam tratar a todos com igualdade, elogiando ou censurando quando era o caso. As falhas eram identificadas e o castigo anunciado com clareza. E sempre aplicado, também. Colo ou afago só mesmo para a pequena Yale, a mascote do colégio, uma cachorrinha que adorava comer arroz com carne moída e se enrolar aos pés da Irmã Alegria.

A escola contava também com duas professoras contratadas que não moravam no colégio. A Dona Glorinha era extrovertida e falava muito alto; lecionava para a 1ª e 2ª séries. Dona Maria Luiza, que dava aulas para os meninos da 4ª série, era uma senhora magra e quase sempre muito séria. Elas eram sempre mais sensíveis às carências afetivas dos alunos e procuravam, na medida do possível, trazer-nos algum agrado ainda que fosse na forma impessoal de uma premiação pelos resultados nos estudos. Logo se tornaram para mim as pessoas mais importantes, pois me fizeram descobri que aprender novas coisas era a melhor forma de preencher os vazios da alma e de abrandar as saudades de casa. Por volta de 1956 chegamos a ter uma professora de ginástica, mas foi por pouco tempo.

A supervisão geral do internato era feita pelos membros da Irmandade da Candelária. O Irmão Provedor era a pessoa mais importante da entidade. Naquela época ocupava o cargo o senhor Frutuoso Pereira Ramos, um nome que as freiras faziam questão que soubéssemos de cor. Embora formal, sempre de terno, não deixava de nos dirigir a palavra quando nos visitava. Mostrava interesse em ouvir os relatos das freiras e fazia-lhes perguntas sobre o nosso dia-a-dia. Outras pessoas da Irmandade se encarregavam de assuntos específicos, como era o caso do senhor Sampaio, responsável pela sessão de cinema, do senhor Luciano, que conduzia a “jardineira” quando havia um passeio fora de muros e de um senhor alto e de postura empertigada a quem chamavam de “Major” ou, carinhosamente, de "Major Papada".

(O "Major" e seu Luciano, 1955)


PS. Na semana passada tive notíca da morte da Irmã Vicência, ocorrida em junho do ano passado. Vivera os ultimos 10 anos de sua vida sobre uma cama de hospital, consequencia de múltiplos AVCs. Não falava, mas tinha consciência do que se passava à sua volta. Aos 105 anos!