terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Teixeira Júnior, 158

Assim que o barão de Ramiz Galvão recebeu do empreiteiro o prédio do campo de S. Cristóvão tratou de fazer algumas adaptações que julgou necessárias. Uma delas foi a construção de uma nova caixa d’água, com capacidade para 30 mil litros, que ele considerava ser o ideal para o atendimento da futura população escolar. A outra foi mandar levantar um muro dividindo ao meio o pátio de recreio, para separar os meninos das meninas. O muro, entretanto, acabou sendo insuficiente para superar os preconceitos da época. Até bem pouco tempo, pelo que sei, os meninos nunca chegaram a freqüentar aquele colégio .

O departamento masculino seria criado finalmente em Teresópolis, em data que desconheço, provavelmente no final dos anos 40 ou início dos 50. Em 1953 o pequeno grupo que ali se encontrava foi transferido para um novo prédio adquirido pela Irmandade. A idéia era ir aumentando, pouco a pouco, a admissão de novos alunos.

Esse prédio havia sido adquirido pela Irmandade da Candelária em meados de 1947 . Na verdade eram dois terrenos contíguos: um com frente para a rua Teixeira Júnior, 158 (antigo 48) e o outro com frente para a rua Argentina nº 75. O terreno da Teixeira Júnior, onde estava construído o prédio principal, media 33,50 m de frente. O da rua Argentina era 10 metros mais largo. O comprimento total media cerca de 140 metros. A área total do terreno era de pouco mais de 5 mil m2.

Era um prédio antigo onde antes havia funcionado o colégio Pio Americano que pertencera aos pais da atriz Beatriz Segall, que ali chegou a estudar. A unidade principal, um bloco de três andares, ocupava o centro do terreno, no seu sentido longitudinal. À direita desse bloco, para quem olhasse da rua, havia um espaço com jardins e bastantes árvores que o mantinham quase sempre fresco e sombreado. No lado oposto havia um outro bloco, menor, em sentido transversal, que se ligava ao principal e assim separava o jardim que dava para a rua do pátio interno. Ficava um pouco recuado em relação à fachada do bloco principal de modo a destacar a sala de visitas, com sua varanda coberta e as escadas que lhe davam acesso. No vão que havia entre esse bloco e o muro divisório começou a ser construída a capela, com sua fachada voltada para o jardim da frente.

Na parte térrea do prédio, ao fundo do bloco principal, funcionava o refeitório. Tinha três mesas compridas de mármore branco ladeadas por bancos de madeira e uma mesa auxiliar onde eram colocadas as panelas com a comida a ser servida. Ao lado do refeitório, num anexo, ficavam a cozinha, a copa e a despensa. A seguir, em área a qual os alunos não tinham acesso, porque davam para a Rua Argentina, havia a lavanderia, o galinheiro e a horta.

(refeitório)

O grande pátio de recreio ficava em frente ao refeitório, para o lado do campo do Vasco. Era então, em terra batida, com algumas árvores próximas ao muro divisório.

No pequeno bloco transversal estava a “sala de comando”, porque era a mais próxima aos aposentos das freiras. Pela manhã funcionava como sala de aula da terceira série e na parte da tarde e da noite era a sala onde todos se reuniam para estudar e fazer os deveres. Ali ficavam os meios de comunicação da escola: o telefone e o rádio. Ali também ocorriam as sessões de corte de cabelo. Ali ouvíamos os “sermões” das freiras. Ali eram as sessões solenes de encerramento do ano letivo.

Por uma porta nos fundos dessa sala chegava-se ao pequeno coro da capela. Outra porta, voltada para a rua, dava para uma escada que descia para o jardim da frente e por isso ficava sempre fechada. Em sentido oposto, uma terceira porta dava para a varanda voltada para o pátio interno que era de onde saiam as escadas que ligavam com o térreo e com o andar superior. Uma outra porta conectava com o bloco principal, de frente para o aposento privativos das freiras, que estava sempre fechado e onde ninguém podia entrar.

(o pátio interno, imagem recente) 
A sala de visitas estava bem na frente do prédio, no primeiro andar, protegida por uma pequena varanda donde saiam um par de escadas em sentidos opostos dando para o jardim. Só era utilizada uma vez por mês, quando os internos recebiam a visita das famílias.

(Visita ao colégio, com a família, em 1983) 
Na seqüência vinham os já mencionados aposentos das freiras e, a seguir, os banheiros para uso dos alunos, a sala de recreação interna onde passávamos as tardes dos sábados e domingos e onde se realizavam as sessões de cinema. Depois vinham as duas salas de aula. Na parte final do bloco havia ainda duas salas grandes, que no meu tempo estiveram quase sempre fechadas.

No andar de cima ficavam os dormitórios, os banheiros, e os armários onde se guardavam as roupas limpas vindas da lavanderia. Os salões da parte do fundo, como no andar de baixo, estavam desocupados e também ficavam sempre fechados.

(o dormitório) 
O meu novo lar era, então, um casarão enorme, com muitos espaços vazios e lugares que viviam sempre fechados, inacessíveis à nossa curiosidade. Imenso, se comparado ao número de crianças e adultos que ali viviam. O silêncio do lugar fazia tudo aquilo parecer ainda maior.

Os muros altos que nos separavam dos vizinhos de ambos os lados não nos permitiam ter idéia do que se passava naqueles espaços. Das janelas da “sala de comando” conseguíamos ver as poucas casas que ficavam em frente, na Rua Teixeira Júnior. E das janelas do dormitório que ficava no terceiro andar, avistávamos ao longe a enigmática – porque não sabíamos o que era aquilo - cúpula do Observatório Nacional. Para o lado da Rua Argentina quase nada se podia ver, pois o portão era pequeno e raramente tínhamos acesso àquela parte do terreno.

O mundo exterior que melhor conseguíamos visualizar com amplidão era o que se via das compridas varandas do 2º e do 3º andares que davam para o pátio interno. Eram as varandas dos nossos sonhos. Dali podíamos estender o olhar bem ao longe e enxergar algo mais interessante. Quase em primeiro plano, por sobre os telhados baixos do casario vizinho, enxergávamos boa parte do campo e das arquibancadas do Vasco da Gama. A entrada era pela Rua São Januário, que ficava a apenas dois quarteirões dali. Víamos os jogadores treinando e até mesmo alguma partida no final de semana. Mas o interesse era pouco. Nenhum de nós trocava o pique-esconde ou as bolinhas de gude para ver futebol de longe.

A vista para o campo do Vasco encerra uma história bastante pitoresca envolvendo o inesquecível compositor Ari Barroso, que na época, entre outras atividades, era também narrador esportivo. Flamenguista roxo, Ari deu para implicar com a diretoria do Vasco que, chateada, passou a impedir sua entrada em S. Januário. Ele não se abalou. Com seu marcante estilo improvisador dirigiu-se ao prédio onde então funcionava o Pio Americano e convenceu seu diretor a deixá-lo subir até o telhado. De lá, com perfeita visão do campo, narrou todo o desenrolar do jogo.

Um pouco mais além do campo do Vasco, mas um pouco encoberto pela copa das árvores, podia-se ver a bizarra construção do Castelo Mourisco, em Manguinhos, de onde Osvaldo Cruz havia comandado o combate à varíola, ainda no começo do século XX.

Eu sabia que nenhuma daquelas vistas jamais substituiria a que eu tinha da varanda da casa espetada nas ladeiras da “Escadinha”, no Grajaú [a rua Engenheiro Morsing, que hoje virou acesso à favela Nova Divinéia]. Dali podia ver as pipas coloridas dançando no céu, o vôo dos pássaros e os balões de São João. Podia, se quisesse, ir correndo atrás deles. Das varandas do internato só os meus pensamentos podiam voar.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Um pouco de história

A história do colégio começa no distante ano de 1881 quando alguns membros da Irmandade da Candelária lançam a idéia de instituir um “Asilo para a Infância Desvalida”. Antonio Gonçalves de Araújo revela-se, então, um dos membros da Irmandade que mais apoiam a idéia. Aprovado o projeto, a instituição faz construir um prédio no campo de São Cristóvão onde o asilo deveria funcionar. Mas por dificuldades não previstas tudo tem de ser adiado e o tal prédio acaba por ser vendido ao governo Imperial que ali vai instalar, em 1888, o internato do Colégio Pedro II (que até então funcionava na Rua São Francisco Xavier, na Tijuca).

O prédio do Colégio Pedro II (que nos primeiros anos da República passou a se chamar
“Ginásio Nacional”) no Campo de S. Cristóvão.


Gonçalves de Araújo falece em 1889 (21 de setembro), antes que a irmandade encontrasse uma nova solução para o asilo. Ao ser aberto o seu testamento, entretanto, descobre-se que ele deixara mil e quinhentos contos de reis - quase toda a sua fortuna – destinados exclusivamente para a criação do asilo. Determina esse documento que duzentos e cinqüenta contos de réis devem ser aplicados na construção ou aquisição de um prédio onde o asilo deve funcionar, e que os restantes mil duzentos e cinqüenta contos devem ser investidos de forma que o rendimento sustente as despesas com a manutenção do colégio e dos internos. Finalmente, recomenda aos testamenteiros que não sendo possível criar uma instituição nova fosse o legado repassado à Irmandade do Santíssimo Sacramento da Candelária, para o seu Asilo da Infância Desvalida.

Antonio Gonçalves de Araújo

Suas vontades são cumpridas e o colégio é construído no campo de São Cristóvão e inaugurado a 30 de dezembro de 1900. Curiosamente, o colégio se situa bem em frente ao prédio que fora vendido ao Imperador. O responsável pela construção é o empreiteiro português Antonio Teixeira Rodrigues, conde de Santa Marinha, que entrega a obra no dia 31 de agosto daquele ano.

O conde de Sta. Marinha (do flickr de sergioasrosas)

A demora, entretanto, altera bastante os valores originalmente previstos. O custo da construção alcança cerca de 1.300 contos de réis (ou 5 vezes mais do que o estimado por Gonçalves de Araújo0, mas os rendimentos do capital investido durante os dez anos anteriores permitem cobrir o gasto maior. Fica, ainda, do legado original, um patrimônio em imóveis que em 1901 esá avaliado em 1.585 contos de réis e produz uma renda anual de 155 contos anuais.

O educandário do Campo de São Cristóvão, em um antigo postal.



As primeiras crianças a entrar para o Gonçalves de Araújo são 31 meninas, todas com idades entre 7 e 10 anos, transferidas de um outro asilo mantido pela Candelária, o Recolhimento de Nossa Senhora da Piedade. Dali também vêm as três jovens acima mencionadas, para ajudar nos serviços.
Nos primeiros tempos o colégio acolhe crianças de ambos os sexos. Depois a Candelária decidiria aceitar apenas meninas naquele prédio e criar um departamento masculino em outro local. Isso, contudo, só viria a ocorrer muitos anos mais tarde, e bem longe dali, em Teresópolis.

O internato In Ferreira da Rosa, “Rio de Janeiro, 1905”.


Agora, o nome das primeiras pessoas contratadas para dar atendimento às internas na data da abertura das aulas, a 21 de julho de 1901:

Diretor: Benjamin Franklin de Ramiz Galvão (barão de Ramiz Galvão)
Regente e professora: D. Paulina Monteira de Barros Pereira da Silva.
Capelão: Pe. Thomaz Aristóteles Guizan
Médico: Dr. Luiz Alves Pereira
Inspetora de alunas: D. Carolina Freire
Roupeira: D. Armida Vasconcelos
Almoxarife: Manoel Martins de Castro
Porteiro: José de Almeida Figueiredo
Auxiliares da inspeção escolar: Evarista Silva, Silvina de Sousa e Silva e Constança Neves (egressas do Recolhimento de N.S.da Piedade)



Fonte: “Relatório apresentado à Irmandade do Santíssimo Sacramento da Freguesia de Nossa Senhora da Candelária pelo seu provedor Julio César de Oliveira em 31 de julho de 1901. RJ. Olympio de Campos. 1901.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

O Portão (Depois que o sorvete acabou)


A garganta estava bem cicatrizada e eu já me tinha esquecido do gostinho dos Chicabons, Kalús e Kajás que o médico recomendara. Fevereiro passou voando e já estávamos no meio de março. Havia chegado, enfim, o dia de ir para o colégio.
Minha mãe e eu descemos do bonde no Campo de São Cristóvão, não muito longe do nosso destino. Andamos alguns quarteirões ao longo da Rua General Argolo e logo alcançamos a Rua Teixeira Júnior. Fazia muito calor e a rua estava calma e completamente deserta. Nenhum sopro de vento, nenhum zumbido de inseto, esvoaçar de pássaro ou mesmo um latido de cachorro. Era como se a natureza fizesse um protesto mudo. Não havia ninguém que pudesse, agora por milagre, interpor-se naquela caminhada. Nada se movia para distrair nossa atenção e desviar os nossos pensamentos.
Seguíamos calados. O que quer que fosse que pudéssemos dizer um ao outro fluía apenas através da forma como nos dávamos as mãos.
Paramos defronte a um portão alto, todo em ferro, pesado, cinza, que dava a impressão de ser uma barreira intransponível para quem estivesse lá dentro. Minha mãe tocou a campainha. Esperamos alguns momentos, mudos ainda, até que surgiu alguém no alto da escada que ficava atrás do portão. Era uma freira já idosa, magra, pequena, embora parecesse maior por conta do hábito azul escuro e do enorme chapéu branco que usava. Pareceu-me que já nos esperava e nos convidou a subir para a sala de visitas.
Lá dentro o ambiente era sóbrio. As poucas persianas abertas apenas para a ocasião denotavam um espaço pouco usado. Os móveis eram antigos, escuros, com ornamentos em espiral e as poltronas e cadeiras tinham o assento em palhinha. Tudo muito limpo e ordenadamente distribuído. O teto alto ajudava a manter o ambiente fresco apesar do calor do lado de fora. Na parede em frente à porta de entrada três retratos a óleo reproduziam os bustos de homens sérios, com roupas escuras.
A freira e minha mãe sentaram-se nas beiras das cadeiras, como já estivessem para levantar. Conversaram na minha presença o pouco que era preciso para a ocasião. Falaram sobre a bagagem que eu levava, que era mínima e constava apenas de um par de sabonetes, escova e pasta de dentes. Não queriam que se levasse mais do que o essencial. Roupa, só a que levava no corpo, que certamente já não me serviria quando fosse voltar para casa, no final do ano. A partir da manhã seguinte vestiria o uniforme que me igualaria a todos os outros internos.
Quando minha mãe se levantou e fez menção de se despedir voltei a segurar sua mão com força. A velha freira acostumada com as fraquezas dos pequenos e de suas mães percebeu o gesto e deixou-me ir com ela até o portão de ferro. A concessão me deu algum alívio, mas seriam apenas uns segundos a mais. Logo compreendi que minha mãe não queria alongar aquilo. Tanto ela quanto eu sabíamos que não se podia voltar atrás. Iríamos sentir a separação e chorar por isso certamente, mas não havia como nos consolarmos. Ela tinha de ir embora e eu para o interior daquele lugar desconhecido.
E assim aconteceu. Logo que chegamos ao portão fez-me dar-lhe um beijo e disse, como quem pede desculpas, que ia até a esquina comprar-me algum doce na padaria e que voltava logo. Por fim ela desceu a rua e eu entrei tentando secar as lágrimas, agora já confuso sem saber se eram de saudade ou de temor pelo que teria de enfrentar sozinho dali por diante. Minhas pernas pareciam desarticuladas como pedaços de pau ao subir aqueles onze degraus de granito polido. No alto, a velha freira e um novo mundo me aguardavam.
Pouco mais me ficou na memória daquele dia. Recordo apenas que me levavam de um lado para outro a percorrer as dependências do internato. Eu me sentia como se fosse um robô. A alma tinha ficado junto ao portão.