terça-feira, 24 de agosto de 2010

Passaporte para o ginásio

Não foi só pelo episódio do concurso de matemática nos tempos da 4ª série que eu guardo a professora Maria Luiza na memória com um carinho especial. Ela sabia da situação de todos os seus alunos de suas famílias e tentava sempre fazer algo a mais para nos ajudar a aprender. E foi com essa motivação que no final daquele ano começou a fazer mais uma campanha, desta vez para que o colégio oferecesse, no ano seguinte, a quinta série. É que naquela época o curso primário ia só até à 4ª série e esse era o compromisso do educandário para com os internos. Concluída a 4ª série tínhamos de voltar para casa e buscar cada um o seu próprio rumo. Além disso, para se entrar no ginasial era preciso passar por um exame de admissão, razão porque muitas escolas adotavam um 5º ano, também chamado de « curso de admissão ». E tal foi o seu empenho que mais uma vez conseguiu o seu intento. Ela conseguiu fazer, também, que eu entendesse que ficar um ano a mais no internato era algo necessário e bom para mim.

Mas não ficou por aí. Quando alguém sugeriu no ano seguinte que eu deveria tentar uma vaga para fazer o  ginasial no histórico Colégio Pedro II foi ela mais uma vez que me tomou como aluno especial, para que eu não perdesse aquela oportunidade. É que a disputa era bem concorrida; mais de dois mil candidatos para apenas quarenta vagas.

Faltando um mês para os exames ela conseguiu que as freiras me deixassem ir para a sua casa e me fez estudar em regime intensivo. Deu resultado. Quando o Diário de Notícias publicou a relação dos classificados, na edição do dia 20 de dezembro, meu nome estava lá. A 40ª vaga era a minha. Era o meu passaporte para uma escola considerada de elite.

Alguns dias depois minha mãe e eu fomos à casa da professora agradecer o quanto fizera por mim. Dona Maria Luiza estava feliz. Tinha sido uma vitória também sua.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Dois presidentes

Dois Presidentes




A comunidade luso-brasileira estava em festa naquele início de junho de 1957. Desde 1910, ano em que se instalou a República em Portugal, era apenas a segunda vez que o Brasil ia receber a visita de um presidente da “pátria-mãe”. O ilustre visitante era o General Craveiro Lopes, militar de carreira, formado na aviação, que apesar de General e de Presidente pouco mandava em Portugal. Talvez por isso tenha sido esperado com mais carinho.

Craveiro Lopes era uma espécie de chefe de estado dos atuais regimes parlamentares. Havia assumido a presidência de Portugal em 1951 e terminaria o seu mandato em agosto daquele ano. Era, por assim dizer, uma viagem-prêmio. De fato, dois meses depois de seu retorno a Portugal passou o cargo para o Almirante Américo Thomaz.

Portugal era comandado, de fato, por Antonio de Oliveira Salazar, nomeado Ministro das Finanças em 1928 e que havia assumido o posto mais alto do poder, como presidente do Conselho de Ministros, alguns anos depois. Salazar manteve-se à frente do governo até 1968 quando passou a sofrer de doença cerebral em conseqüência de uma queda. Morreu em 1970 sem ver o fim do regime que tinha comandado por tanto tempo, derrubado pela “Revolução dos Cravos” no histórico 25 de Abril de 1974.

Ainda era grande, naquela altura, a presença no Brasil de cidadãos nascidos na terra de Vasco da Gama. Ninguém havia esquecido a extraordinária figura de Carmen Miranda, portuguesa da Beira Alta, morta dois anos antes quando ocupava no ápice de sua carreira como intérprete da musica popular brasileira. Os jornais registravam o fluxo contínuo de personalidades no mundo artístico português como a fadista Amália Rodrigues, a atriz Beatriz Costa e muitos outros que tinham grande acolhida entre o público português que aqui vivia e entre os próprios brasileiros. Alguns por aqui ficavam dando seqüência às suas carreiras e ao restante de suas vidas. Outros voltavam não sem fixar o Brasil – ou os brasileiros – em suas vidas, como foi o caso de Beatriz Costa que se casou com um empresário de São Paulo. Ou, ainda, como que para coroar a intensidade dessa união, o caso do banqueiro português que se apaixonou e casou com a mais bela brasileira daqueles tempos, a baiana Marta Rocha.

A maior parte da colônia estava justamente no Rio de Janeiro, atuando nas mais diversas atividades, mas ocupando espaços bem característicos, como o das padarias, quase cem por cento lusitanas. A seguir, ou talvez no mesmo nível das padarias vinha o Vasco da Gama, tradicional clube de futebol do Rio de Janeiro, com uma legião de torcedores que incluía todos os estratos sociais da capital.

A presença no mundo religioso, assistencial ou cultural também era fator de destaque da comunidade lusitana. Havia a Beneficência Portuguesa, um dos mais completos hospitais da cidade, a Ordem Terceira e o Real Gabinete Português de Leitura. Acima de tudo, a igreja de Nossa Senhora da Candelária, pela sua história e localização geográfica muito particular, na esquina formada pelas duas mais importantes avenidas da cidade, a Presidente Vargas e a Rio Branco, era um dos marcos mais conhecidos do povo carioca.

Por mais que fosse disputada a agenda do ilustre visitante não poderia deixar de incluir uma missa solene na Igreja da Candelária. Foi marcada para o domingo, nove de junho, ao meio dia, a ser oficiada pelo Cardeal Dom Jaime de Barros Câmara. Para mais, o programa foi incluído na agenda oficial, o que exigia também a presença do chefe do governo brasileiro, o Presidente Juscelino.

No dia marcado a Candelária se encheu de gente logo cedo. Lá estava todo o efetivo da Irmandade e das instituições por ela mantidas, inclusive o Gonçalves de Araújo presente na sua totalidade: as freiras, professoras e os internos: meninos e meninas. Boa parte das meninas, minha irmã entre elas, fizeram parte do grande coro que se apresentou durante a missa. Eu e meus colegas coroinhas fomos chamados para ajudar no altar.

Ficamos assustados com a responsabilidade de participar de um evento tão importante, com a presença de dois presidentes. Até a hora da missa começar eu ficava imaginando como seriam suas expressões, como estampariam o poder e a importância que tinham.

Mas na hora da cerimônia a surpresa foi ainda maior: estávamos a menos de dois passos de JK e Craveiro e das respectivas primeiras damas. Ambos tinham sido colocados lado a lado, juntamente com as esposas, a poucos metros do altar-mor.

Por estarem assim tão perto pude observá-los várias vezes e registrar suas fisionomias. Ambos tinham o mesmo tipo físico e pareciam ter quase a mesma idade. Na verdade Craveiro tinha 63 anos, oito anos mais velho que JK.

As missas daquele tempo não eram eventos muito apropriados para que se pudesse examinar muitos detalhes de quem as assiste, qualquer que fosse a importância ou destaque da pessoa em causa. Como todos os fiéis, deveriam ajoelhar-se ou ficar de pé, ou sentado, conforme as exigências do ritual. Só era necessário movimentar os lábios para dizer, em coro, os “Améns” ao final das preces ou para, num momento mais solene, receber a comunhão. No resto do tempo eram apenas espectadores. Era uma solenidade em que políticos não deveriam se sentir muito à vontade, acostumados a terem sempre a prerrogativa de discursar e de fazer de suas palavras o centro das atenções.

Para nós, apesar da oportunidade que nos colocava tão próximos daqueles personagens, não havia muito que ver ou interpretar daquelas figuras estáticas. Não era possível discernir nenhum sinal que caracterizasse o poder que deveriam ter ou suas qualidades morais ou suas habilidades políticas apenas pelos trajes que vestiam, um civil, outro militar. JK manteve uma aparência distante, como seus pensamentos estivessem longe dali. Parecia cansado. Craveiro Lopes, por sua vez, dava a impressão de estar mais envolvido com o ambiente e com o que se passava à sua volta. Parecia contente pela forma como estava sendo recebido. Talvez suas fisionomias refletissem de certo modo as responsabilidades que pesavam sobre cada um.

Felizmente, apesar de longa e solene, a missa decorreu sem qualquer imprevisto nas nossas atividades de coroinhas. Na verdade nosso papel foi pouco mais que decorativo porque o cardeal que celebrou a missa esteve sempre apoiado por vários padres que atuaram como acólitos. Ficou-nos a tarefa de, nos dias seguintes, responder às perguntas dos colegas sobre tudo o que eles imaginavam que pudéssemos ou não ter enxergado nas ilustres figuras presidenciais.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Leituras

A curiosidade é uma das maravilhas da espécie humana. Depois da saudade da família o que mais eu sentia no internato era a limitação do exercício da curiosidade pela carência de informações e de novidades que a estimulassem. Aquilo acabava acentuando a sensação de exclusão do mundo.

Volta e meia alguém levava um jornal para o colégio. As freiras liam, faziam comentários entre si, mas era difícil entender o conteúdo daquelas conversas. As crianças não tinham acesso aos jornais. Melhor dizendo, só tínhamos acesso aos seus fragmentos. Era quando precisávamos de papel para ir ao banheiro. Para não onerar o orçamento as freiras recortavam os jornais velhos em pedacinhos e nos davam meia dúzia deles cada vez que tínhamos que ir fazer as nossas necessidades. Com alguma sorte conseguíamos juntar dois pedaços de uma mesma página e encontrar alguma novidade interessante. Eram sempre lidos e relidos com muita atenção. Quando não dava para entender, tentava-se advinhar. Líamos desde os pequenos anúncios, necrológios, até as corridas de cavalos. Nada escapava. Com sorte ganhava-se uma tirinha do Pinduca, ou do Reizinho.

As outras formas de obter informações acabavam nos sujeitando a riscos e punições. Um dia acabei passando por uma experiência dessas.

O episódio aconteceu em 1957, na época em que a Irmã Alegria estava doente. Quando ela foi para o hospital algumas funções tiveram de ser redistribuídas. No horário das refeições, por exemplo, era costume a Irmã Alegria ficar no andar de cima, de plantão, para atender algum eventual chamado de telefone ou do portão. As outras freiras desciam para o refeitório junto com a criançada. Assim, na ausência da Irmã Alegria foi preciso escalar algum dos meninos maiores para que assumissem aquele papel. Como eu fazia parte desse grupo e gozava de bom conceito com as freiras quase sempre era escolhido. Claro que à custa da fome encompridada. Depois, em compensação, servia-me à vontade.

Num desses plantões encontrei sobre a máquina de costura que ficava na sala onde tinha que guardar o meu posto, um exemplar de “O Cruzeiro”. Naquela época era a revista de maior circulação no país, famosa por ter introduzido e explorado ao máximo as técnicas do foto-jornalismo: quanto maior a foto, maior a polêmica ou o escândalo, ou vice-versa. O exemplar havia sido deixado por um sobrinho da Irmã Vicência, o Elias, que fazia faculdade e que freqüentemente ia visitar a tia.

Curioso para saber o que acontecia no Rio de Janeiro e no resto do mundo, mas também para esquecer a barriga vazia, pus-me a folhear a revista a começar pela sempre engraçada página de “O Amigo da Onça”. E assim o tempo passou sem que eu desse por ele. Quando um colega me veio dizer que já podia descer para almoçar, fechei a revista e recoloquei-a onde a tinha encontrado. Já o almoço e o recreio me haviam feito esquecer da revista e do que nela tinha visto quando fui chamado à presença da freira. Ela me aguardava na sala, de pé, ao lado da máquina de costura. Estava brava: dera-se conta de que o objeto da minha curiosidade não estava exatamente no lugar em que fora deixada e tinha deduzido que eu havia lido a revista.

Até ai não achei que o assunto fosse grave. Uma bronca, um puxão de orelha, talvez. Não podia imaginar que ler uma revista tão popular e que servia de leitura para as freiras e seu sobrinho fosse algum pecado. Foi preciso que as freiras explicassem, não sem algum constrangimento, que aquela revista em particular continha muitas fotos do carnaval e fotos de muitas pessoas com roupas inadequadas para entrar num colégio de freiras, muito menos para serem vistas pelos olhos de um garoto que deveria se conservar inocente. Tentei argumentar, mas de nada adiantou. Tomei um baita sermão e fiquei sem direito de assistir à próxima sessão de cinema.

Nessa época eu já tinha onze anos, uma idade em que já se sabe um pouco de muita coisa e que se quer saber mais ainda. Idade suficiente para se ter algumas noções de certo e errado e de justiça. Achei que se me consideravam bom aluno e bem comportado a ponto de justificar que as freiras me dessem encargos maiores, essas condições deveriam também contar a meu favor, para minhas faltas ou deslizes. Talvez tivessem reconsiderado se eu soubesse argumentar melhor meus pontos de vista. Mas não soube e daí minha frustração. Chorei, ressentido, achando que o fato de não me terem dado o crédito que eu entendia merecer era castigo pior do que ter ficado sem cinema.

De qualquer forma a curiosidade não morreu ali. Mas ficou a lição: depois disso nunca mais deixei de prestar muita atenção no lugar e na posição em que as freiras esqueciam os novos exemplares de « O Cruzeiro ».

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A morte da irmã superiora

A morte era algo distante, como quase tudo o que acontecia no mundo real fora do colégio. Mesmo assim chegavam até nós as notícias mais trágicas envolvendo pessoas famosas, como o suicídio de Vargas em 1954 e a morte de Carmen Miranda, no ano seguinte. Foram casos que comoveram todo o Brasil e as freiras os comentavam entre si ou com as professoras.

Ali dentro a preocupação era apenas com o destino das nossas almas. Tínhamos que fazer o que a religião nos ensinava para merecermos sempre o reino dos céus. Mas era uma preocupação para dali a muitos anos. Criança não podia morrer, pelo menos não devia. Natural, isso sim, era que uma pessoa idosa ficasse doente e depois morresse.

E foi assim que, um dia, a morte veio bater à porta do colégio. Foi em 1957. Veio buscar a Irmã Alegria, nossa diretora. Ela era mesmo a pessoa mais velha do internato.

Ficamos sabendo que ela estava doente ainda no primeiro semestre daquele ano porque durante vários dias ela não saía do seu quarto. Seria uma indisposição segundo as outras irmãs. Depois veio o médico e receitou-lhe alguns medicamentos. O quadro deve ter piorado porque a levaram para um hospital no Matoso, que pertencia à congregação das vicentinas. Nós não sabíamos exatamente de que mal ela sofria. Mas desconfiávamos que era alguma coisa grave. Na hora das orações rezávamos sempre pelo seu restabelecimento.

Em julho ou agosto ela voltou ao internato. Estava muito mais magra e pálida. Sua aparência era extremamente frágil e parecia até que era o pesado hábito que a mantinha de pé. Sua voz era um fiapo e já não conseguia reproduzir a autoridade da madre superiora e da severa professora do 3º ano.

Viera apenas para se despedir. Depois de algumas semanas voltou para o hospital. Faleceu no dia 6 de setembro. Tinha 75 anos de idade.





O santinho que marcou o falecimento da Irmã Alegria.


Depois da morte da irmã Alegria é que ficamos sabendo que ela tinha câncer, então considerada uma doença muito grave e fatal. Alguns meninos diziam conhecer casos na suas famílias. Contavam que era uma coisa terrível, um tumor que devorava as pessoas por dentro, até a morte. Que geralmente dava em pessoas mais velhas, mas em crianças também. Diziam ainda que era contagioso e algumas outras bobagens. Aquelas conversas  arrepiavam e enchiam a todos de preocupação.

Depois desse episódio nunca mais se ouviu falar em morte no colégio. Irmã Vicência e irmã Luiza, deixaram o internato nos anos 70, com muita saúde, e tiveram as duas vidas longas. A irmã Vicência passou dos cem anos, e a irmã Luiza, chegou perto dessa marca.