quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Dois presidentes

Dois Presidentes




A comunidade luso-brasileira estava em festa naquele início de junho de 1957. Desde 1910, ano em que se instalou a República em Portugal, era apenas a segunda vez que o Brasil ia receber a visita de um presidente da “pátria-mãe”. O ilustre visitante era o General Craveiro Lopes, militar de carreira, formado na aviação, que apesar de General e de Presidente pouco mandava em Portugal. Talvez por isso tenha sido esperado com mais carinho.

Craveiro Lopes era uma espécie de chefe de estado dos atuais regimes parlamentares. Havia assumido a presidência de Portugal em 1951 e terminaria o seu mandato em agosto daquele ano. Era, por assim dizer, uma viagem-prêmio. De fato, dois meses depois de seu retorno a Portugal passou o cargo para o Almirante Américo Thomaz.

Portugal era comandado, de fato, por Antonio de Oliveira Salazar, nomeado Ministro das Finanças em 1928 e que havia assumido o posto mais alto do poder, como presidente do Conselho de Ministros, alguns anos depois. Salazar manteve-se à frente do governo até 1968 quando passou a sofrer de doença cerebral em conseqüência de uma queda. Morreu em 1970 sem ver o fim do regime que tinha comandado por tanto tempo, derrubado pela “Revolução dos Cravos” no histórico 25 de Abril de 1974.

Ainda era grande, naquela altura, a presença no Brasil de cidadãos nascidos na terra de Vasco da Gama. Ninguém havia esquecido a extraordinária figura de Carmen Miranda, portuguesa da Beira Alta, morta dois anos antes quando ocupava no ápice de sua carreira como intérprete da musica popular brasileira. Os jornais registravam o fluxo contínuo de personalidades no mundo artístico português como a fadista Amália Rodrigues, a atriz Beatriz Costa e muitos outros que tinham grande acolhida entre o público português que aqui vivia e entre os próprios brasileiros. Alguns por aqui ficavam dando seqüência às suas carreiras e ao restante de suas vidas. Outros voltavam não sem fixar o Brasil – ou os brasileiros – em suas vidas, como foi o caso de Beatriz Costa que se casou com um empresário de São Paulo. Ou, ainda, como que para coroar a intensidade dessa união, o caso do banqueiro português que se apaixonou e casou com a mais bela brasileira daqueles tempos, a baiana Marta Rocha.

A maior parte da colônia estava justamente no Rio de Janeiro, atuando nas mais diversas atividades, mas ocupando espaços bem característicos, como o das padarias, quase cem por cento lusitanas. A seguir, ou talvez no mesmo nível das padarias vinha o Vasco da Gama, tradicional clube de futebol do Rio de Janeiro, com uma legião de torcedores que incluía todos os estratos sociais da capital.

A presença no mundo religioso, assistencial ou cultural também era fator de destaque da comunidade lusitana. Havia a Beneficência Portuguesa, um dos mais completos hospitais da cidade, a Ordem Terceira e o Real Gabinete Português de Leitura. Acima de tudo, a igreja de Nossa Senhora da Candelária, pela sua história e localização geográfica muito particular, na esquina formada pelas duas mais importantes avenidas da cidade, a Presidente Vargas e a Rio Branco, era um dos marcos mais conhecidos do povo carioca.

Por mais que fosse disputada a agenda do ilustre visitante não poderia deixar de incluir uma missa solene na Igreja da Candelária. Foi marcada para o domingo, nove de junho, ao meio dia, a ser oficiada pelo Cardeal Dom Jaime de Barros Câmara. Para mais, o programa foi incluído na agenda oficial, o que exigia também a presença do chefe do governo brasileiro, o Presidente Juscelino.

No dia marcado a Candelária se encheu de gente logo cedo. Lá estava todo o efetivo da Irmandade e das instituições por ela mantidas, inclusive o Gonçalves de Araújo presente na sua totalidade: as freiras, professoras e os internos: meninos e meninas. Boa parte das meninas, minha irmã entre elas, fizeram parte do grande coro que se apresentou durante a missa. Eu e meus colegas coroinhas fomos chamados para ajudar no altar.

Ficamos assustados com a responsabilidade de participar de um evento tão importante, com a presença de dois presidentes. Até a hora da missa começar eu ficava imaginando como seriam suas expressões, como estampariam o poder e a importância que tinham.

Mas na hora da cerimônia a surpresa foi ainda maior: estávamos a menos de dois passos de JK e Craveiro e das respectivas primeiras damas. Ambos tinham sido colocados lado a lado, juntamente com as esposas, a poucos metros do altar-mor.

Por estarem assim tão perto pude observá-los várias vezes e registrar suas fisionomias. Ambos tinham o mesmo tipo físico e pareciam ter quase a mesma idade. Na verdade Craveiro tinha 63 anos, oito anos mais velho que JK.

As missas daquele tempo não eram eventos muito apropriados para que se pudesse examinar muitos detalhes de quem as assiste, qualquer que fosse a importância ou destaque da pessoa em causa. Como todos os fiéis, deveriam ajoelhar-se ou ficar de pé, ou sentado, conforme as exigências do ritual. Só era necessário movimentar os lábios para dizer, em coro, os “Améns” ao final das preces ou para, num momento mais solene, receber a comunhão. No resto do tempo eram apenas espectadores. Era uma solenidade em que políticos não deveriam se sentir muito à vontade, acostumados a terem sempre a prerrogativa de discursar e de fazer de suas palavras o centro das atenções.

Para nós, apesar da oportunidade que nos colocava tão próximos daqueles personagens, não havia muito que ver ou interpretar daquelas figuras estáticas. Não era possível discernir nenhum sinal que caracterizasse o poder que deveriam ter ou suas qualidades morais ou suas habilidades políticas apenas pelos trajes que vestiam, um civil, outro militar. JK manteve uma aparência distante, como seus pensamentos estivessem longe dali. Parecia cansado. Craveiro Lopes, por sua vez, dava a impressão de estar mais envolvido com o ambiente e com o que se passava à sua volta. Parecia contente pela forma como estava sendo recebido. Talvez suas fisionomias refletissem de certo modo as responsabilidades que pesavam sobre cada um.

Felizmente, apesar de longa e solene, a missa decorreu sem qualquer imprevisto nas nossas atividades de coroinhas. Na verdade nosso papel foi pouco mais que decorativo porque o cardeal que celebrou a missa esteve sempre apoiado por vários padres que atuaram como acólitos. Ficou-nos a tarefa de, nos dias seguintes, responder às perguntas dos colegas sobre tudo o que eles imaginavam que pudéssemos ou não ter enxergado nas ilustres figuras presidenciais.

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