terça-feira, 16 de março de 2010

Rotina

A saída de Portugal onde eu havia nascido, o relacionamento com os até então desconhecidos parentes do Rio de Janeiro, a adaptação ao novo clima tropical, o aprendizado do sotaque e vocabulário do carioca, todas aquelas mudanças pareciam desafios fáceis comparados com a mudança do Grajaú para São Cristóvão. É que até aquele momento minha mãe tinha estado sempre perto e presente. Agora, ela, a tia Olímpia, os irmãos, tios, primos, deixavam de ser os personagens de referência. Dali por diante eu estaria longe deles, convivendo com pessoas desconhecidas e num ambiente completamente estranho. Não era um ambiente hostil, mas eu me sentia sufocado pelas saudades, pelos muros que cercavam a escola, pela sensação de isolamento e por ver todas essas mesmas percepções espelhadas em cada um dos rostos dos outros meninos.

“O que não tem remédio, remediado está”, costumava dizer a tia Olímpia, sempre pronta a avaliar tudo com o tradicional determinismo da cultura popular portuguesa. E assim foi.

Com o passar das primeiras semanas os espaços do colégio iam aos poucos se revelando e se encaixando nos referenciais daquele novo espaço-mundo. Associar nomes aos rostos, a seqüência das atividades de rotina, as regras para comer, brincar, estudar, enfim, para o que era permitido fazer. Tudo funcionava segundo uma ordem estabelecida. Mais uma vez me vinham à memória os ditos da tia Olímpia apreendidos nas tradições de um povo de emigrantes : “na terra aonde fores ter, faz como vires fazer”. E assim as recordações de casa e os apertos da saudade iam ficando para os momentos de maior isolamento, na hora das rezas ou sob os lençóis da cama e o manto das noites em que o sono custava a chegar.

Os dias dos internos começavam cedo, às sete horas. Era quando uma das freiras entrava no dormitório batendo palmas para fazer todo mundo sair da cama. Logo ela abria as janelas altas e o sol inundava as pequenas caras ainda estremunhadas da criançada. Em pouco tempo os grupos iam-se organizando em fila para ir ao banheiro onde outra freira já estava a postos para supervisionar e organizar os que iriam escovar os dentes e aguardar a vez de tomar seu banho frio. Enquanto isso os outros arrumavam as camas.

Dali a meia hora todos estavam prontos, em fila indiana, os menores à frente e os maiores fechando o pelotão. Então desciam para a primeira refeição do dia: o invariável café com leite e pão com manteiga. Do refeitório marchavam para as salas de aula no primeiro andar. As classes começavam às oito horas e iam até ao meio-dia. Hora de se organizar outra vez a fila, desta vez na varanda, para descer para ao refeitório e encher as barrigas vazias. Uma mesa de cada vez, as crianças iam para a fila pegar da pilha um prato de ferro esmaltado, branco, e aguardarem serem servidas. As porções eram boas, mas alguém sempre estava disposto a repetir, se sobrasse. Depois do almoço era a hora do bendito recreio, geralmente no pátio externo. Uma hora para por os assuntos em dia e dedicar-se às brincadeiras. Para os meninos maiores, entretanto, o recreio começava mais tarde. Eram escalados, em sistema de revezamento, dois por semana, para lavar os pratos após as refeições. Nos dois últimos anos eu era sempre um dos escalados para esses serviços. Mas sempre havia uma expectativa de compensação já que a despensa ficava bem ao lado da copa e lá estava o depósito com atraentes torrões de açúcar a se oferecerem às mãos ligeiras e bocas gulosas. Que a Irmã Luiza não visse! O resto da tarde era dedicado a fazer as lições de casa, com uma interrupção para fazer um lanche rápido.

Lá pelas cinco da tarde era o momento das orações rezadas no coro da capela. Primeiro o terço, depois as ladainhas, encerrando-se com o ensaio dos cânticos para a missa dominical. Às seis já todos estavam de volta ao refeitório para o jantar, uma refeição mais leve. Depois mais meia hora de recreio no pátio. Para finalizar o dia mais duas horas de estudo ou leitura. Às nove horas todos já estavam na cama para dormir.

Todos deitados, luzes apagadas, a freira circulava entre as fileiras de camas até se dar conta de que todos dormiam.

Os sábados eram dedicados à faxina, atividade que ficava sob a responsabilidade dos meninos maiores comandados pela Irmã Luiza e Irmã Vicência. As turmas eram divididas e cada grupo tratava de cumprir sua missão: limpar banheiros, lavar as varandas, encerar as salas, etc. A função de lavar os banheiros era considerada como a mais desagradável porque tínhamos que esvaziar, com um pano, toda a água do sifão das privadas e depois lavar com sabão e sapólio para deixar tudo brilhando e desinfetado. O mais pesado era lavar com esfregão as compridas varandas do colégio, todas em ladrilhos brancos, hexagonais. As paredes adjacentes eram revestidas de azulejos também brancos que deviam ficar brilhantes e limpos. Não havia hipótese de deixar alguma sujeira que não fosse logo vista pelos olhos aguçados das freiras. Mas havia sempre o lado divertido da coisa. Ficávamos esperando que a freira se afastasse para “esquiar” no piso escorregadio de água e sabão. Tudo em meio a risos abafados. Às vezes podia-se ganhar um tombo, que além da dor poderia revelar a molecagem. Por isso a maioria “esquiava” com a mão acompanhando o muro da varanda para o caso de perder o equilíbrio. Encerar e dar lustre no piso das salas era outra das duras tarefas do sábado. Naquele tempo só havia cera em pasta e o lustro era conseguido na base de escovão. Como tudo o mais, também virava brincadeira na ausência das freiras, com os escovões dançando freneticamente de um lado para o outro e escapando – de propósito – em direção a uma vítima.

Os trabalhos das manhãs de sábado terminavam sempre na hora do almoço. Era a hora da recompensa para a turma da limpeza: um prato reforçado e sobremesa em dobro.

Um sábado por mês era dedicado ao corte de cabelo da garotada. Duas freiras dividiam entre si a tarefa. Geralmente a Irmã Vicência ficava com a velha máquina manual e a Irmã Alegria com uma mais moderna, elétrica. Ficávamos esperando a vez e torcendo para não cair com a irmã Vicência porque a máquina manual mordia e puxava o cabelo da gente. Mas o que ninguém gostava mesmo era o estilo de corte: a detestável franjinha, aquele tufo de cabelos em semicírculo, na frente, sobre a testa. O resto era passado na máquina zero. Na copa do mundo de futebol de 2002 o jogador Ronaldo tentou relançar essa velha moda e muita gente achou graça. Eu tinha um motivo a mais para não gostar desse estilo de corte: eram as minhas orelhas de abano que pareciam dobrar de tamanho quando me cortavam o cabelo daquele jeito. Os que ficavam por último gozavam dos que levavam as mordidas da máquina e das caras de desconsolo que uns faziam ao levantar da cadeira.

Os domingos começavam pela missa na capela. Era sempre bem cedinho, antes do café, para que todos pudessem comungar. É que no sábado à tarde recebíamos a visita do Monsenhor Magalhães para nos confessar e fazer alguma preleção. O resto do dia era dedicado inteiramente aos jogos e brincadeiras, no pátio ou numa das salas do primeiro andar.

Aquelas rotinas tentavam nos passar um mundo de ordem, organizado e estável. De previsibilidade, mas também de segurança. Procuravam definir um limite para novas experiências e situações.

O pior era que a rotina parecia esticar o tempo. Os poucos dias especiais demoravam uma eternidade: o sábado do cinema, os dias das festas religiosas como a Páscoa, São João e Cosme e Damião. O dia de sairmos de férias, então, parecia demorar séculos. Até esse dia chegar contávamos as horas e os minutos que faltavam para o domingo da visita mensal. Esse será o tema da próxima semana. 



Um comentário:

  1. Essa rotina não mudou muito, era bem parecida na década de 80. A limpeza, as brincadeiras no chão molhado e escorregadio, os estudos, etc. Mas parece que escapei da sessão do corte de cabelos, e da operação sifão das privadas, heheheh.
    Meninos na Varanda tem me propiciado ótimas lembranças, uma leitura muito prazerosa e aguardada. A ti Almicar meus agradecimentos!

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