A Irmã Alegria era a madre superiora, a que me recebera no portão de ferro. Estava na faixa dos setenta anos, magrinha, mas bem empertigada. Tinha voz firme e ia sempre direto ao assunto, sem rodeios. Além da supervisão geral, lecionava para os meninos da terceira série. Sua adjunta era a Irmã Vicência, uma cearense de quarenta e poucos anos, mas aparentava bem menos. Era muito ativa e sempre atenta a tudo que se passava entre os meninos. A irmã Luiza, mineira, era a responsável pela cozinha e alimentação da garotada. Era a mais nova e também a mais robusta das três. Comandava também as duas funcionárias da lavanderia e da cozinha.
Irmã Alegria, c.1955
Mais tarde fiquei sabendo que esses nomes não eram os de batismo, mas eram escolhidos por elas quando adotavam a vida religiosa. Todas pertenciam à congregação das Vicentinas e faziam parte da Associação da Medalha Milagrosa, devotas da francesa Santa Catarina Laboré. Usavam um hábito pesado, de lã ou tecido semelhante, na cor azul marinho, e um enorme chapéu com abas em ponta, de tecido branco, a “corneta”, como o que aparece na foto acima. Esse chapéu, anos mais tarde, acabou ficando muito conhecido pela personagem do filme e depois seriado de TV “A Noviça Voadora”. Para fazê-lo era preciso engomar um pano retangular sobre uma superfície plana e, depois de seco, dobrado para adquirir o seu formato tradicional. Sob a corneta usavam uma espécie de lenço também em tecido branco, que cobria integralmente os cabelos, as orelhas e o pescoço e se prolongava sobre o peito, na forma de duas palas também engomadas. Era uma vestimenta bizarra, pesada, que nos chocava pela total inadequação ao clima sempre quente do Rio de Janeiro.
A impressão causada por aquela vestimenta e as perguntas sobre o seu significado pronto deram lugar à preocupação em interpretar as expressões e os sentimentos que os rostos – as únicas partes visíveis daqueles personagens – poderiam representar. Era o mais importante.
Nas primeiras semanas eu só falava com elas quando me perguntavam alguma coisa. Procurava prestar toda a atenção ao que diziam ou faziam, para descobrir a hierarquia entre elas, compreender as funções e responsabilidades de cada uma em relação a nós.
As freiras eram pessoas preparadas que conheciam música e muitas habilidades manuais. Desenhavam e pintavam com facilidade. Tinham uma técnica curiosa para fazer “santinhos” com papel vegetal, furando com a ponta de um alfinete para criar um efeito de alto-relevo. Dominavam o uso do francês, trocando entre si algumas palavras nesse idioma. Não sei se por simples hábito ou porque não queriam que entendêssemos. Com certa freqüência ouvíamos a irmã Vicência chamar a irmã Alegria de “Marcela”, ou algo parecido. Ficávamos intrigados com o que parecia ser um tratamento que não se enquadrava nos formalismos da época. Talvez fosse o seu nome de batismo, pensava. Só muitos anos mais tarde, quando recordava o fato com um dos companheiros daqueles tempos, é que me dei conta de que ela talvez dissesse “ma soeur”, “minha irmã” em francês.
(Irmã Vicência, 1983)
Eram freiras por vocação. A Irmã Luiza contou-me, numa das visitas que lhe fiz no Asilo onde vivia já nonagenária, que havia escolhido a vida religiosa quando tinha apenas quinze anos. Disse que seu pai ao saber da sua vontade, pediu-lhe que adiasse o ingresso no convento até quando ele morresse. Talvez esperasse que, com o passar dos anos, a filha mudasse de idéia. Afinal, Belo Horizonte era uma capital com muitas opções. Mas nada a fez mudar de vocação. Nove anos mais tarde o pai faleceu e ela, sentindo-se livre da promessa, pode realizar o sonho de tornar-se Irmã de Caridade.
(Irmã Luiza, 2004)
As freiras faziam questão de dizer e repetir as regras a que tínhamos de obedecer e as aplicavam com bastante consistência. Não se deixavam enredar pelas pequenas manhas da garotada. Cuidavam de todos nós com atenção, mas sem a pretensão de substituir o carinho maternal. Procuravam tratar a todos com igualdade, elogiando ou censurando quando era o caso. As falhas eram identificadas e o castigo anunciado com clareza. E sempre aplicado, também. Colo ou afago só mesmo para a pequena Yale, a mascote do colégio, uma cachorrinha que adorava comer arroz com carne moída e se enrolar aos pés da Irmã Alegria.
A escola contava também com duas professoras contratadas que não moravam no colégio. A Dona Glorinha era extrovertida e falava muito alto; lecionava para a 1ª e 2ª séries. Dona Maria Luiza, que dava aulas para os meninos da 4ª série, era uma senhora magra e quase sempre muito séria. Elas eram sempre mais sensíveis às carências afetivas dos alunos e procuravam, na medida do possível, trazer-nos algum agrado ainda que fosse na forma impessoal de uma premiação pelos resultados nos estudos. Logo se tornaram para mim as pessoas mais importantes, pois me fizeram descobri que aprender novas coisas era a melhor forma de preencher os vazios da alma e de abrandar as saudades de casa. Por volta de 1956 chegamos a ter uma professora de ginástica, mas foi por pouco tempo.
A supervisão geral do internato era feita pelos membros da Irmandade da Candelária. O Irmão Provedor era a pessoa mais importante da entidade. Naquela época ocupava o cargo o senhor Frutuoso Pereira Ramos, um nome que as freiras faziam questão que soubéssemos de cor. Embora formal, sempre de terno, não deixava de nos dirigir a palavra quando nos visitava. Mostrava interesse em ouvir os relatos das freiras e fazia-lhes perguntas sobre o nosso dia-a-dia. Outras pessoas da Irmandade se encarregavam de assuntos específicos, como era o caso do senhor Sampaio, responsável pela sessão de cinema, do senhor Luciano, que conduzia a “jardineira” quando havia um passeio fora de muros e de um senhor alto e de postura empertigada a quem chamavam de “Major” ou, carinhosamente, de "Major Papada".
(O "Major" e seu Luciano, 1955)
PS. Na semana passada tive notíca da morte da Irmã Vicência, ocorrida em junho do ano passado. Vivera os ultimos 10 anos de sua vida sobre uma cama de hospital, consequencia de múltiplos AVCs. Não falava, mas tinha consciência do que se passava à sua volta. Aos 105 anos!
Freiras e professores, foram no EGA verdadeiros educadores, no sentido mais completo da palavra. Um exemplo que não sei se hoje em dia consegue se encontrar nas escolas. Claro sempre tem excessões em toda parte.
ResponderExcluirPersonagens marcantes na vida de todos ex-alunos, que têm boas e más lembranças do convívios dentre aqueles muros.
Guardo os nomes e lembranças de todos os meus professores, do pré à 8ª série, e de todas as irmãs e padres que por lá passaram durante meu período de interno. A gratidão e carinho por todos é imensa.
Uma observação: Notei na legenda da foto da irmã Vicência, ser o ano de 1983, ano em que lá ainda era aluno. No entanto não me recordo dela. Será que ela não atuaria no feminino ? Seria a única justificativa para tal, já que com as irmãs que atuavam no feminino não tinhamos muito contato. Até lembro vagamente de algumas, puxando pela memória, mas que sempre discretas, transitavam anônimas aos nossos conhecimentos pelas varandas que davam vista ao pátio de recreio do feminino. Das irmãs do feminino que poderia me lembrar o nome, cito a Araceli (Madre), a Antonia (Temível), a Fernandes (Secretaria), a Teresa (Biblioteca).
ResponderExcluirMe lembro de outras, mas cujos nomes no momento não me vêm à cabeça. Tinha uma moreninha, muito querida, que no recreio da manhã distribuía a merenda aos alunos. A merenda geralmente era um pão doce, que vinha numa espécie de urna aberta, de madeira e pesada. Acredito que fosse verde, mas temo que esteja incerto a esse respeito.
Certa vez por volta das festas juninas, justamente na hora do recreio soltei uma bombinha, e o barulho foi estrondoso, assustando a todos. A cena que não me esqueço foi a dessa irmã (o nome dela brinca com a minha memória neste momento, bailando entre se revelar ou não), caindo sentada dentro dessa urna e amassando alguns pães que ainda restavam no seu interior. O susto com o barulho da bombinha a desequilibrou, e lhe propiciou essa queda. Mas felizmente ela ao se levantar estava mais distraída em rir da cena que fôra protagonista do que procurar o autor da bombinha. Seria irmã Valda ? Hummm talvez, as meninas ex-alunas (desse época) de certo devem saber de quem falo. Mesmo com muitas passagens já no esquecimento, as histórias que sobraram ainda são tantas que daria pra escrever inúmeros livros.
Antonio, realmente a Irmã Vicência não estava mais no educandário quando lá estive com minha família em 1983. Localizei-a em Niterói, em uma instituição religiosa da qual não me lembro o nome. Foi lá que fiz a foto dela. A irmã Luiza eu só voltei a encontrar no Matoso, há cerca de sete anos, no asilo. Nessa altura a Irmã Vicência estava lá, também, mas no hospital, pois já tinha sofrido o AVC. Quanto às freiras do Feminino não me lembro de nenhuma, embora fosse lá visitar minha irmã, que também era interna (1956-1966). Finalmente, quanto a escrever, é meter mãos a obra. Pelo que percebo vc tem ótima memória e gosta de escrever... Suas contribuições aqui têm sido muito oportunas e interessantes. Vou continuar contando com elas. Abraços.
ResponderExcluirProcuro faz vinte anos pela irmã Vicencia que durante o ano de 1960/62 fazia parte da paróquia de São Sebastião do Barreto em Niterói.
ExcluirSuponho que seja outra Irmã Vicência. A que menciono no blog estava em São Cristóvão (RJ) no período que vc menciona. Abs.
ExcluirSebastiao Jose 29de Janeiro de 2O16
ResponderExcluirAmilcar eu sou do ano de 1957 fiz um comentario voce recebeu me responda se possivel
Sebastiao Jose 29de Janeiro de 2O16
ResponderExcluirAmilcar eu sou do ano de 1957 fiz um comentario voce recebeu me responda se possivel
Caro Sebastião José. Recebi apenas a mensagem acima. Se preferir mande direto para meu email "ajagbr@gmail.com". Fico no aguardo. Abraços.
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