domingo, 7 de fevereiro de 2010

O Portão (Depois que o sorvete acabou)


A garganta estava bem cicatrizada e eu já me tinha esquecido do gostinho dos Chicabons, Kalús e Kajás que o médico recomendara. Fevereiro passou voando e já estávamos no meio de março. Havia chegado, enfim, o dia de ir para o colégio.
Minha mãe e eu descemos do bonde no Campo de São Cristóvão, não muito longe do nosso destino. Andamos alguns quarteirões ao longo da Rua General Argolo e logo alcançamos a Rua Teixeira Júnior. Fazia muito calor e a rua estava calma e completamente deserta. Nenhum sopro de vento, nenhum zumbido de inseto, esvoaçar de pássaro ou mesmo um latido de cachorro. Era como se a natureza fizesse um protesto mudo. Não havia ninguém que pudesse, agora por milagre, interpor-se naquela caminhada. Nada se movia para distrair nossa atenção e desviar os nossos pensamentos.
Seguíamos calados. O que quer que fosse que pudéssemos dizer um ao outro fluía apenas através da forma como nos dávamos as mãos.
Paramos defronte a um portão alto, todo em ferro, pesado, cinza, que dava a impressão de ser uma barreira intransponível para quem estivesse lá dentro. Minha mãe tocou a campainha. Esperamos alguns momentos, mudos ainda, até que surgiu alguém no alto da escada que ficava atrás do portão. Era uma freira já idosa, magra, pequena, embora parecesse maior por conta do hábito azul escuro e do enorme chapéu branco que usava. Pareceu-me que já nos esperava e nos convidou a subir para a sala de visitas.
Lá dentro o ambiente era sóbrio. As poucas persianas abertas apenas para a ocasião denotavam um espaço pouco usado. Os móveis eram antigos, escuros, com ornamentos em espiral e as poltronas e cadeiras tinham o assento em palhinha. Tudo muito limpo e ordenadamente distribuído. O teto alto ajudava a manter o ambiente fresco apesar do calor do lado de fora. Na parede em frente à porta de entrada três retratos a óleo reproduziam os bustos de homens sérios, com roupas escuras.
A freira e minha mãe sentaram-se nas beiras das cadeiras, como já estivessem para levantar. Conversaram na minha presença o pouco que era preciso para a ocasião. Falaram sobre a bagagem que eu levava, que era mínima e constava apenas de um par de sabonetes, escova e pasta de dentes. Não queriam que se levasse mais do que o essencial. Roupa, só a que levava no corpo, que certamente já não me serviria quando fosse voltar para casa, no final do ano. A partir da manhã seguinte vestiria o uniforme que me igualaria a todos os outros internos.
Quando minha mãe se levantou e fez menção de se despedir voltei a segurar sua mão com força. A velha freira acostumada com as fraquezas dos pequenos e de suas mães percebeu o gesto e deixou-me ir com ela até o portão de ferro. A concessão me deu algum alívio, mas seriam apenas uns segundos a mais. Logo compreendi que minha mãe não queria alongar aquilo. Tanto ela quanto eu sabíamos que não se podia voltar atrás. Iríamos sentir a separação e chorar por isso certamente, mas não havia como nos consolarmos. Ela tinha de ir embora e eu para o interior daquele lugar desconhecido.
E assim aconteceu. Logo que chegamos ao portão fez-me dar-lhe um beijo e disse, como quem pede desculpas, que ia até a esquina comprar-me algum doce na padaria e que voltava logo. Por fim ela desceu a rua e eu entrei tentando secar as lágrimas, agora já confuso sem saber se eram de saudade ou de temor pelo que teria de enfrentar sozinho dali por diante. Minhas pernas pareciam desarticuladas como pedaços de pau ao subir aqueles onze degraus de granito polido. No alto, a velha freira e um novo mundo me aguardavam.
Pouco mais me ficou na memória daquele dia. Recordo apenas que me levavam de um lado para outro a percorrer as dependências do internato. Eu me sentia como se fosse um robô. A alma tinha ficado junto ao portão.

2 comentários:

  1. Vendo agora após anos sem por-lhe os olhos encima, noto como imponente era esse portão. Um portal na verdade, que permitia o ir e vir de mundos diferentes. Realmente era bem pesado, e era uma das opções entre as três existentes, sendo a única oficial e de acesso ao público.
    No meu primeiro dia não chorei, mas também foi marcante e inesquecível. Me lembro das filas defronte à porta de acesso ao terceiro andar, por onde iríamos do pátio aos dormitórios. O pátio estava cheio de alunos, e a maioria já estava habituada, poucos eram os novatos, que perdidos e ainda atônitos nem sequer sabiam direito em que fila deveriam entrar.
    Filas, outra peculiaridade que se fazia necesária várias vezes ao dia. O regime era bem próximo do militar, com horários para tudo e normas rígidas de condutas.

    Como pode um simples portão numa foto ser uma imagem tão marcante ?

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